Prosa natalina

Prosa natalina

Aqui estou, Nazareno, saudando a tua chegada, outra vez. Traga-nos o teu olhar misericordioso, o teu rosto de bondade (...)

Paulo Mendes

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O tempo é relativo e a sensação que temos dele depende de nós. Quando ainda guri na Vila Rica, quando era como esses novilhos de sobreano recém-relampeando a aspa, os dias passavam lerdos porque o mundo me esperava por detrás das coxilhas, para além das várzeas, das sangas e dos campos repletos de maçanilhas floridas. Agora, depois de tantos dezembros e janeiros, verões e invernos, outonos e primaveras, as noites se atropelam como as novilhas ariscas e gavionas na saída da mangueira. Dias e noites, manhãs e tardes, semanas, meses e anos chegam e se vão juntos e entreverados, suados, brilhantes e ligeiros como as tropas de abril. Aquelas que passavam pela frente do bolicho e ficávamos vendo a poeira levantar provocada pelos cascos da animalada que cruzava babando rumo ao frigorífico. 

Este ano também passou de atropelo. Por isso, é chegada a hora de exaltar a chegada do Nazareno, que simboliza o renascimento e o recomeço de tudo. Esta prosa natalina, tão simples e ingênua, como sempre foram as “Campereadas”, chega como um carinho de mãe, um abraço de pai, um sorriso de irmão, um causo de tio, um cheiro de avô. Uma conversa doce e amiga dessas de final de tarde, início de noite, na varanda, ao lado dos cachorros, dos gatos, enxergando as tambeiras reunidas no potreiro, junto do cavalo de encilha, das ovelhas, dessas coisas tão conhecidas que ficaram guardadas para sempre no nosso coração interiorano. Ah, coração, te acalma xiru velho, não te apoquente tanto, nem te emociones demasiado que já não estás para isso. Já bateste tanto assim acelerado, melhor ir baixando o facho, porque de pouco adianta teu bater algariado, nada irá mudar, seguiremos eu e tu na mesma toada, tapados da mesma geada. 

Aqui estou, Nazareno, saudando a tua chegada. Traga-nos o teu olhar misericordioso, o teu rosto de bondade imensurável e a tua mágica maneira de a tudo perdoar. Ensina-nos a ser como tu, solidário, humilde e cumpridor de teus deveres, amigo fraterno e bom filho. Traga teu exemplo de resiliência, fé e esperança que é tudo o que estamos precisando. Veja o mundo, Nazareno, está aos pedaços, irmãos matando irmãos, guerras, a fome se alastrando, falta de compaixão, os valores estão se perdendo, ninguém quer segurar a mão do próximo. Estava na hora mesmo de tu voltares para mostrar como se faz, tu que já deste um exemplo tão bonito. Dê outra vez. 

Como os antigos navegadores fenícios, que perante as tempestades, antes de morrer, atiravam os remos ao mar, atiro as rédeas na grama campeira. Lembre-se, Nazareno, sou apenas um guri bolicheiro que cresceu e se fez homem, mas muito lutou pelos corredores e invernadas do pago, conseguiu algumas coisas, mas o resto de seus sonhos ficou pelo caminho. O guri fez o que pode, aquilo que foi possível. Julgue-me como a um modesto peão do Rio Grande, tenha compaixão deste teu abnegado e obediente servo, que briga só com o cabo da adaga, desesperado buscando a luz. Abrace-me, Nazareno, porque a ti entrego meu coração e minha alma. Agora é a tua voz que eu preciso quando já não tenho nada e a tua palavra será o sinuelo da tropa para que eu prossiga repontando e assobiando neste já meu longo estradear... 


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