Viver para contar

Viver para contar

Estou aqui, seu Turíbio, contando as coisas que vi e vivi, os sonhos, as dores, as tristezas, as desesperanças e até as alegrias da minha gente

Paulo Mendes

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No próximo dia 21 se completam dois anos daquilo que decidi chamar de “renascimento”, data em que deixei o Hospital São Lucas da PUCRS, em 2020, após me salvar das complicações decorrentes da Covid-19. Três dias depois, 24, farei 60 anos. Apesar de com esta idade o sujeito passa a ser chamado de “sexagenário”, estou me sentindo muito bem, sereno e entusiasmado com tudo que ainda planejo realizar. Entendo que isso é o mais importante, estar preparado para o futuro enquanto vou aproveitando este destino de contador de causos, essas memórias transformadas em literatura que os leitores tanto apreciam. Eu também me alimento delas. Vou dando “boia para o coração”, porque quanto mais o tempo passa mais vamos nos aproximando do começo, numa eterna ronda em círculos, de borco, invertida. 

Quando era menino bolicheiro na Vila Rica, ficava lendo os rótulos das mercadorias nas prateleiras e vasculhando os cadernos de cultura do antigo Correio do Povo, que me chegava às mãos com muitos dias de atraso. Mas sabia que a poesia não tem data e “viajava” feliz pelos contos e versos de Aparício Silva Rillo, Drummond, Mario Quintana, Erico Verissimo, Rubem Braga, Simões Lopes Neto, Aureliano de Figueiredo Pinto, Vitor Hugo, Balzac e tantos outros poetas e escritores nacionais, regionais e estrangeiros, juntos e misturados. Lembro-me de um verão que passei inteirinho lendo folhas recortadas debaixo dos cinamomos, em frente ao nosso bolicho. No calor de janeiro, seu Turíbio me disse: “Tens que estudar bastante, se esforçar, e quem sabe um dia possa contar tudo isso que viveste aqui, talvez falar de nós...” 

Estou aqui, seu Turíbio, contando as coisas que vi e vivi, os sonhos, as dores, as tristezas, as desesperanças e até as alegrias da minha gente. Porque tudo o que falo não aprendi em livros, escutei em músicas, em filmes ou por ouvir dizer. Conto aquilo que presenciei, o que deveras ocorreu ao lado do balcão, no terreiro onde ficavam os cavalos atados nas tramas. Conto o que enxerguei com esses olhos já marejados de tanto estradear. E prefiro os mais fracos, os menos favorecidos, os pobres, os que passam necessidades e fome, os que passam vergonha. Conto e exalto os grandes proprietários, os patrões humanos, denuncio arbitrariedades e falta de empatia, mas meu coração se apieda daqueles que nunca tiveram voz. 

Neste momento, preciso agradecer aos que sempre estiveram do meu lado, muitos já partiram e outros continuam aqui comigo. Dona Mirica, saudosa mãe adotiva, assim como é saudosa a Anália, minha mãe biológica. Seu José Mendes, meu pai adotivo, o tropeiro, que me apontou os caminhos da vida. Donaldson Garschagen, enciclopedista e tradutor, meu pai biológico que encontrei em 2007, e convivemos por 12 anos. Ensinou-me o valor da palavra escrita. Aos colegas de Correio do Povo, aos familiares de Júlio de Castilhos, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Aos amigos espalhados pelo Rio Grande, pelo Brasil e pelo mundo. À Santinha de Fátima que me puxou pela mão, e ao Patrão Celestial. Quanto tempo ainda tenho? Não sei. Mas juro, enquanto respirar viverei com alegria por enxergar as belezas do mundo. E, mesmo depois que me for, seguirei nestas “Campereadas” que, por serem feitas de palavras, viverão para sempre no imaginário da gauchada. 


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