Veio e partiu

Veio e partiu

Ficarei segurando um lenço branco na ponta do cabo do relho e saudando o ano que se vai embora. Veio, fez sua parte e está de partida

Paulo Mendes

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E chegamos, de novo, a outro fim de ano. Não foi fácil aguentar o tirão desse, meus amigos e minhas amigas, leitores e leitoras, mas é sempre assim. “Se fosse fácil não seria a vida”, costumava brincar seu Turíbio, o velho casmurro, bebericando seu aperitivo de cachaça com bitter, sentado num cepo ao lado do balcão sujo de graxa e fumo em rolo, cheirando a querosene. Embora fatalista, o velho também gostava de salientar que devemos ter uma postura de enfrentamento das situações que nos deparamos. Seu Turíbio passava o tempo todo reclamando de uns “atrasados” que deveria receber de sua aposentadoria, que o governo nunca lhe restituía, que enrolava, mas que um dia ia receber. Foi então que, num final de ano, correu notícia que havia saído a tal bolada. O ancião se manteve impávido, quieto, quase indiferente, sem demonstrar grandes arroubos de felicidade. 

Na primeira oportunidade que tive, quando ficamos só nós dois no bolicho, perguntei-lhe se era verdade o que andavam comentando sobre o dinheiro. “Sim, finalmente botei a mão no que era meu”, me confirmou o vizinho, pois morava a uns duzentos metros de nossa casa. “Mas o senhor parece que nem ficou feliz”, comentei, “por que, qual o motivo?” O xiru velho mexeu no bolso da bombacha, tirou um palheiro bem devagar, ajeitou bem, acendeu, tragou e, calmamente me respondeu. “Olha, a gente precisa ir atrás das coisas, correr, mas depois que se consegue, não é de bom alvitre ficar alardeando, como galinha que bota ovo e fica cantando vantagem. E a luta sempre continua, aparece outra demanda, como a que estou empenhado agora, mas isso é um segredo meu.” Eu fiquei mudo, pensando, até que ele me tirou da contemplação. “Te direi uma coisa, mas não conte a ninguém. Estou mais faceiro que ganso novo em taipa de açude. Mas guardo bem a alegria, senão ela voa...” 

Ando como seu Turíbio, tenho minhas alegrias, mas demonstro pouco, prefiro-as guardadas comigo. Também convivemos com diversas agruras neste ano, muita gente partindo, amigos enfrentando terríveis doenças, vendo pessoas passando fome nas ruas, a natureza sendo depauperada em troca das commodities, essas coisas que nos embrulham o estômago. Tudo é verdade, mas é preciso ser resiliente, não desanimar, sacudir a poeira e enfrentar, todos os dias, os novos desafios que se apresentam. E esses não poucos. 
Ficarei segurando um lenço branco na ponta do cabo do relho e saudando o ano que se vai embora. Ele veio, fez sua parte e está de partida. Que venha 2023, trazendo novas madrugadas, novas tardes e noites, que tudo se renove, de preferência para melhor. A esperança não deve ficar encolhida, deve sair e ficar à espreita. Cada um de nós sabe que esta é uma estrada longa e, quando parece que está chegando ao fim, na verdade, está apenas começando. Vamos atrás de nossos “atrasados”. Vamos ficar esperando pelos sinais daqueles que já partiram. Eles querem ver nossa alegria olfateando as madrugadas que vêm e vão todos os dias. Parece que ouço a dona Mirica, minha mãezinha, me incentivando com aquele seu jeito campeiro e carinhoso: “Não te mixa, lagartixa!”... 

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