Esporeie o futuro

Esporeie o futuro

Então, não deixe o velho ranzinza entrar com amarguras e tristezas. Esporeie o futuro como um domador de sonhos

Paulo Mendes

publicidade

Acendi um toco de vela pra não me vestir no escuro / Sempre tive opinião, não fico em cima do muro / Respeito muito o passado, mas o que me atiça é o futuro... 
O senhor e a senhora que me leem aqui neste espaço desde os idos de 2009, quando começamos a escrever essas “Campereadas”, sabem que tenho um carinho imenso pelas memórias, pelas coisas que nos aconteceram, nos moldaram e nos fizeram do jeito que somos. Aquelas mesmas que trazemos ajojadas com trancelins de ouro na alma, bem guardadas, num escaninho secreto do coração. Que lindo poder sentar numa varanda, ao anoitecer, sorvendo um amargo, e repassar, como num filme bom, as alegrias e as tristezas que tivemos. Essas últimas quase sempre são maiores, mas as primeiras sempre compensam tudo, pois por serem menores são mais queridas. Porem serem queridas são amigas, voltam sempre, e viram eternas.

O passado sempre se insinua no presente, mas precisamos estar sempre de olhos voltados para o amanhã. Por esta época do ano, ao final de novembro e início de dezembro de 2020, fui acometido de Covid-19, e logo acabei internado no Hospital São Lucas da PUCRS. Na primeira semana, meu quadro piorou muito, acabei indo para a UTI, onde vi a morte de muito perto. Numa madrugada, tive terríveis presságios, índices baixos de oxigenação no sangue, febre, delírios e achei que poderia estar indo embora. Então, algo aconteceu. Disse “não”, “ainda não é a hora”, e parti para uma reação derradeira. Rezei, repeti por horas que precisava de meu pulmão de volta. Foquei na família, nos amigos, nos campos da infância onde me criei, nas praias que adoro caminhar nos finais das tardes de verão e em tudo o que amava e fazia importância para mim. Quando amanheceu o dia, comecei a melhorar. O pulmão voltava a dar sinais de recuperação. E eu retornava à vida para completar coisas que sonhava.

Por isso, digo hoje, temos que nos inspirar em tudo o que vivemos, mas o que importa mesmo é o dia de amanhã. Aproveitar todos os raros momentos que ganhamos de uma vida que, como se sabe, é uma só, na qual não teremos nova oportunidade sobre a terra. Eu não estava preparado para partir naquele momento, me agarrei com todas as minhas forças, supliquei e decidi viver. E, agora, só penso naquilo que ainda quero realizar, todas possíveis e que só dependem de mim. Comecei, de certa forma, a abandonar comportamentos que nada somavam no meu viver. Paro na estrada para tirar fotos e converso mais com as pessoas que considero interessantes.

Entro nas memórias e elas me confortam. Retorno para o presente e vejo, no horizonte, o por vir a me convidar para outra tropeada. Elas, as andanças, não param nunca, continuam sempre e sempre. A vida é demasiada curta? Talvez seja, mas pode ser suficiente para ser vivida intensamente e para deixar um legado caso não tenhamos que perder muito tempo fazendo coisas que não gostamos, permanecendo anos rodeados de gente que não amamos. Então, não deixe o velho ranzinza entrar pela sua porta com amarguras e tristezas. Dê rédeas para o destino e esporeie o futuro como um domador de sonhos. 

Veja Também


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895