Dom Desidério vai embora
O dom Dério, que definhava havia anos, quis morrer justamente neste dia, enquanto declamava um poema de T.S. Eliot.
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O inverno daquele ano parecia que não queria nos deixar. Depois das incontáveis geadas, da neve que caiu num sábado ao entardecer, das garoas tristes nas tardes curtas, das noites longas e geladas, o setembro se espichava assoprado por um vento matreiro, que se infiltrava pelas frinchas das velhas tábuas do bolicho – que haviam servido anos atrás de armazéns na antiga Charqueada de São João do Barro Preto – e vinha cravar seu punhal de vidro em nossos rostos cansados. “Vai-te embora, excomungado”, imprecava seu Turíbio, num canto, enquanto bebericava lentamente um liso de canha, enrolado num bichará desbotado, com vários furos e fiapos de lã se soltando no assoalho carcomido da venda beira de estrada. O vento ladino não foi. Quem se foi, na verdade, de vez, foi seu Desidério Américo de Magalhães Correia e Albuquerque, o dom Dério, que definhava havia anos, quis morrer justamente neste dia, enquanto declamava um poema de T.S. Eliot.
O velho Dério tinha sido estancieiro para os lados da Fronteira. Viúvo e já doente, viera em busca de uns parentes que jamais encontrou. Estabelecera-se numa pequena chácara bem cuidada na estrada do Cerrito, lugar de boa aguada, sombra, pomar, horta, criava umas ovelhas, tinha vaca de leite, um lindo cavalo zaino e dois cachorros lebreiros. Tinha caseiro e uma empregada que lhe fazia a comida, lavava roupa e todo o serviço de casa. Mas com o passar do tempo, o velho perdera o viço, a doença ia lentamente tirando-lhe os movimentos, o dinheiro que guardava debaixo do colchão foi terminando. O que não acabava nunca era sua verve de contador de causos, de conhecedor de lugares e caminhos, era um homem bastante culto, com faculdade, cursos, e muito viajado, sabia falar espanhol e inglês. Muitos o chamavam de professor, o que realmente era, outros de dom, de doutor, era uma figura muito respeitada.
Quando dom Dério apeava do cavalo Pé de Chuva, que ficava atado nas tramas, debaixo dos cinamomos, o pessoal se ajeitava para ouvir causos de lugares distantes por onde o homem andara quando jovem, ouvir versos de poetas ali desconhecidos, mas que todos escutavam com silêncio e respeito. Ele sabia de cor trechos de contos de Simões Lopes Neto, de Machado de Assis, versos campeiros de Aureliano de Figueiredo Pinto, versos modernos de Carlos Drummond de Andrade e de gente do estrangeiro. Num Natal, ganhei de presente uma edição bilíngue de “Martin Fierro”, de José Hernández, que me acompanha até hoje e moldou meu gosto pelo regionalismo.
Nesta tarde de ventarrão, dom Dério chegou com olhos de vidro, numa charrete puxada por um tordilho, e seu caseiro. Arrastando as alpargatas recitou seu último poema. De certa forma, foi premonitório: “O que chamamos de começo, costuma ser o fim/ E fazer um fim é fazer um começo/ O fim é o lugar de onde começamos.” E parou, já sem vida, ao cair sobre as tábuas velhas. Muito tempo depois, cursando a faculdade de Comunicação Social da UFSM vim descobrir a autoria dos versos. E dei-lhe razão totalmente, porque quanto mais nos aproximamos do fim, é sinal de que vamos recomeçar. Uma nova jornada só começa, exatamente no momento em que uma outra termina. Assim como essas ‘Campereadas’.