Uma saudade que lateja

Uma saudade que lateja

Busco de há muito um remédio para essas dores que me corroem, mas não encontro porque não vendem em farmácia

Paulo Mendes

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Trago em meus internos uma saudade que lateja e enxergo ao longe um guri de calça curta e pés descalços, que eu não quero que a veja. É mais que uma, são duas, quatro, oito, se multiplicam, como esses pássaros que vêm, que ficam, como essas lembranças que por aquerenciadas, e desacorçoadas, nem vão mais embora. São doloridas essas feridas que o tempo deixou por dentro, vieram no vento, por desalento, e sem sustento, são minhas agora. Sim, são minhas, pois mesmo em não sendo rico, nem pobre mais fico, talvez, remediado, mas acostumado a ser abarbarado como um velho angico. E assim vou seguindo na estrada, nesta “Campereada”, vivendo de olada, olhando de reverso, entre a prosa e o verso. Então faço um aparte, vou beber na arte, enfrento esta lida, luta desgranida, e não tendo saída, peço o seu permisso, pois sou linha e caniço do meu universo. 

Ah, queridos leitores e leitoras, quanta coisa a gente traz escondida debaixo das asas do poncho da vida. Ficam lá, essas saudades quietinhas, só esperando o momento certo para aflorar. E nos causam tanta dor, uma tristeza comprida, quase que infinita, porque de antemão sabemos que isso, que torcemos tanto para que voltem, não vão mais voltar. Justamente por isso latejam sem cessar. Vêm à mente aquelas manhãs de pão quente recém-saído do forno, a bicharada fazendo festa no terreiro, o leite fervendo em cima do fogão a lenha, o cheiro das laranjeiras, o grito estridente da passarada no arvoredo, o relincho do Tostado na estribaria do galpão grande, o espetinho de linguiça assando no fogareiro, a vassoura de carqueja descansando atrás da porta da cozinha, a caixa de lenha, o relho de um velho laço dependurado em um prego enferrujado na parede, a folhinha do Berega, o buraco no zinco por onde entrava um raio de sol e o gosto da ambrosia numa tarde de um domingo já tão distante. 

E o doce desses dias era mais doce que o doce da batata doce. E depois, passaram uns anos, outros, mais outros, e tudo mermou como as tardes longas dos outonos da minha Vila Rica. E o que era doce fugiu por entre essas minhas mãos cheias de calos e cicatrizes, maceradas por coices de vacas leiteiras, cortadas por fio de arame farpado, por facas de cortar fumo em rolo, pelos dedos duros de tanto tirar leite na mangueira em madrugadas frias, mãos que se cansaram na bruta faina de segurar regeiras, cabos de arado e sovéus tão rudes. E vieram dias frios e amargas noites, severas madrugadas, manhãs sem sol e tardes encharcadas. Tudo passou num upa, como um arremesso longo e perdido de boleadeiras. 

O boleado restou, por fim, sendo eu, a vida que desapareceu, o boi brasino que se perdeu, quieto e capturado, preso nos tentos sovados das Três Marias. Ah, que vontade louca de um café novinho, recém-passado, para tomar devagar, sem pressa, ao lado de um fogão de ferro, daqueles da chapa bem lisa e mais lustrosa do que bota de correntino. Busco de há muito um remédio para essas dores que me corroem, mas não encontro porque não vendem em farmácia. Quem sabe um dia eu volte para o que deixei, embora, confesso, tenha medo de nada mais encontrar, que tudo virou uma fotografia para se mirar. Só sei dizer que aqui no peito, não tem mais jeito, esta saudade nunca mais para de latejar. 


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