O que habita a retina

O que habita a retina

É impressionante que quanto mais o tempo passa, quanto mais longe me encontro daquela querida terra, mais perto dela eu chego

Paulo Mendes

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Será que o pátio em que brinquei quando guri, com gado de osso, pandorgas e bolitas, ainda espera por mim? Lá, meus amigos e minhas amigas, onde, debaixo dos cinamomos, juntava os ossinhos e fazia tropilhas imaginárias de zainos e tordilhos, juntas de bois, de vacas que davam leite forte e gordo. Será que o campo verdejante onde corri junto com meus cachorros, a Piranha e o Cacique, ainda está lá a me esperar para uma segunda chance? Às vezes penso que sim, por outras acho que talvez tenha me esquecido, depois de sofrer com as unhas afiadas dos arados e plantadeiras que revolveram a terra vermelha. Como eram radiosas as primaveras na Vila Rica, eu apenas um guri campeiro, um piá de calças curtas que corria atrás dos pintos, que tomava banho de açude, que pescava lambaris nas sangas, jogava bolita, soltava pandorgas e amansava lindos fletes de taquara. Tudo era tão pequeno, tão simples, mas era tão lindo. 

A minha saudade encharca essas vistas que já enxergaram de tudo um pouco pelo mundo. Acordo de madrugada e penso naqueles dias luminosos, já tão distantes, e parece que ainda estou lá. É impressionante que quanto mais o tempo passa, quanto mais longe me encontro daquela querida terra, mais perto dela eu chego. Já disse o poeta campeiro que por mais longe que o homem vá, nunca poderá fugir de si mesmo. Noutras manhãs, enquanto mateio solito, olho a água esverdeada do chimarrão e enxergo aquela pequena coxilha onde cresci, onde rolava nas manhãs de outubro, inventando brincadeiras com os cuscos que corriam, acoavam e vinham saltar em mim, como verdadeiros amigos que eram. 

Por que só agora descubro que era tão feliz? Justamente por termos tão pouco, tínhamos o que precisávamos, nós, aquela família humilde que vivia com um pequeno armazém, uma chácara, uns poucos animais, umas lavourinhas, a mãe bolicheira, o pai tropeiro e dois filhos para ajudar nos afazeres domésticos. Éramos quatro, mas nos multiplicávamos com a garra dos que levantam cedo, ao clarear do dia, daqueles que sabem que têm poucas chances aqui na terra caso não se esforcem ao máximo, daqueles que aprendem que é preciso coragem, denodo, não esmorecer nunca. “Lutem, meus filhos, não se entreguem jamais, sejam trabalhadores e honestos”, alertava o pai enquanto alisava a palha, picava o fumo para o palheiro. Depois, chamava-nos, um de cada lado do cepo em que ele estava abancado, e ficávamos sentindo com prazer o aroma do cigarro e o cheiro do suor do Tostado que ficava impregnado na bombacha. 

O que habita a retina é o que mais de mim se ausenta. Já nem sei se ela me habita ou sonho com o passado que escorregou pelos dedos. O pai, a mãe e os amigos que se foram são, hoje, a minha memória. São esses campos, essas matas, esses córregos que ainda resistem entre uma lavoura e outra, sustentando a vida, como quem sujeita na força do braço o peso da vida. Este verde que vive em mim me atiça como as brasas de um borralho moribundo. Quando tudo parece acabado surge no meio das cinzas uma flama viva e tudo recomeça. O que aquece a alma se mistura ao jade das lembranças mais ternas e amigas. Esses olhos cansados cintilam de novo e a minha esperança já não é apenas uma fotografia. É amor à terra e vontade de viver. 


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