Amoras e borboletas

Amoras e borboletas

Eu vim na garupa dos anos, prateado de luas de outono e com sabor de amoras maduras na boca.

Paulo Mendes

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Bem no fundo da invernada grande do passado, numa volta de mato, perto da sanga que escorre límpida e pura, ali, bem escondidas debaixo de uma sombra ancestral, estão as lembranças mais doces. Elas são tantas, por vezes amargas, por vezes insuportáveis, por outras melíficas, tão queridas que chegam sem pedir licença e se instalam dentro da gente. O senhor e a senhora sabem do que estou falando. A vida da gente vai se esgueirando devagar e todos os anos temos que passar por essas invernias brabas, chuvas guasqueadas, garoas com vento, geadas grandes que só vão levantar no meio da manhã, tudo para nos testar, averiguar nossa resiliência, nosso poder atávico de resistir e de antever novas batalhas.

O inverno veio brabo este ano, parece que nos encontrou ainda mais covardes. Estávamos amedrontados com a pandemia que cruzou oceanos e foi parar em todos os lares, em todos os rincões, em todas as cidades e confins do mundo. Ninguém ficou imune. Assim, nos entrincheiramos pelos beirais das casas, nos isolamos ainda mais nesses meses reclusos, escutando a ladainha do vento gemendo pelas esquinas, na pauta dos alambrados, torcendo para que tudo passasse depressa. Não, não foi isso que aconteceu, todos sabemos. Seguiu o baile do mesmo jeito e agora vêm nos dizer que talvez isso, talvez aquilo, que devemos seguir esperando por dias melhores. Então aqui ficamos, aguardando os acontecimentos, tentando tocar a vidinha, como sempre, mas todos sabemos que nada será como antes. 

Por isso, quando vem a primavera, sou guri outra vez. Atiro longe o pala de lã, troco as botas pelas alpargatas e parece que estou caminhando sob o sol da Vila Rica numa esplendorosa manhã de outubro. Já sinto o cheiro da várzea, os pássaros em gritaria voando em direção à restinga onde vislumbro as amoreiras carregadinhas, com milhares de frutas caídas no chão colorado da minha infância. Ah, era tão lindo colher as amoras montado no Tostado, que ficava quieto, imóvel, e a gente de pé sobre o lombo dele, tentando pegar aquelas mais graúdas que sempre estavam nas grimpas. Um dia de chuva caí de um galho, me estatelei, quebrei a clavícula, que até agora me dói. Por dias me contorci de dores, mas descobri com o tempo que as torturas mais terríveis não estão no corpo e sim na alma. Era só um guri que carregava umas três ou quatro bolitas nos bolsos furados e por isso as perdia. 

Hoje vivo encompridando rios, caminho devagar por sobre as sangas invisíveis, formado de silêncios, desvãos e escuros. Eu vim na garupa dos anos, prateado de luas de outono e com sabor de amoras maduras na boca. Tudo passou depressa demais, reconheço, e eu sigo sentindo o gosto das madrugadas no canto dos passarinhos, buscando desesperado que minha literatura gorjeie versos. Lá, bem depois daquela invernada, daquela volta de mato, daquela sanga, está minha metáfora que sonha com coisas vagas que nunca saberei. Assim, meus amigos e amigas, leitores tão queridos que me acompanham há tanto tempo, que me incentivam com mensagens, cartas, e-mails e abraços virtuais, eu me redimo. Inflo o corpo, estufo o peito e, justamente por não ter rumo, saio a galope a semear borboletas nesta primavera, adivinhando o eterno num céu de amoras. 


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