O querido céu de sangue da Vila Rica

O querido céu de sangue da Vila Rica

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Ficava mirando, por vários minutos, o encantado entardecer da Vila Rica. O céu que ia descambando, lentamente, por detrás das coxilhas e dos capões de mato, lá para a banda dos correntinos. Já tinha buscado as vacas de leite, apartado os terneiros, distribuído a ração para os cavalos, os porcos, espalhado cana para as ovelhas.  Havia catado gravetos para a mãe principiar o fogo no outro dia. Também arrancara mandioca, cortara azevém, tinha dado milho para as galinhas.  Eram as minhas obrigações diárias e tudo fazia com muito gosto. E admirar o sol a se deitar era um momento apenas meu, no intervalo da faina, era o que mais gostava naqueles dias tão jovens em que vivi naquela terra tão verdejante e amada.

Os raios avermelhavam a paisagem e pintavam com cores rubras a mataria, o campo, o vulto dos animais  e os pássaros voltando em bando para os ninhos. Também eu voltava, a cavalo, no lombo no Tostado, ao tranco, entristecido, pois a noite tomava conta do mundo e um silêncio de igreja se fazia pelos beirais, pelas várzeas, pelos pátios e rodeios.  Algo terminara, havia uma interrupção entre o final de alguma coisa e o começo de outra.  A gente escutava no rádio a pilha "A Hora da Ave Maria" e eu rezava junto, pedindo às vezes chuva, às vezes saúde para o pai que andava bem doente naquele tempo, boas notas no colégio, tudo o que sonhava. Lembro que uma vez trancei os dedos e pedi à Nossa Senhora que me ajudasse a fazer a faculdade de Jornalismo, pois queria escrever em jornal, falar em rádio, contar as histórias da gente sofrida que conhecia todos os dias no bolicho, os que nunca tinham vez nem voz.

Um dia passei no vestibular, fiz a faculdade federal e consegui realizar o sonho adolescente.  Quando escutei meu nome no rádio, vibrei de forma contida, sem muito alarde. A mãe perguntou: "Passou?", e respondi "sim", surpreendendo-a.  "Mas não está tá faceiro". "Estou feliz, mãe, mas era minha obrigação", respondi. Na época, era muito exigente comigo mesmo, mas hoje sinto que estava errado. Deveria ter feito mais festa, até para alegrar mãe. Então, neste dia, para comemorar, botei o freio no Tostado, um pelego no lombo, montei e fui ver o sol se por no lugar onde mais gostava, lá na  coxilha grande, perto da Charqueada, de onde se avistava um horizonte aberto, avermelhado, tingido, como adorava. Naquela tarde agradeci ao pai, à mãe, ao meu irmão e aos meus amigos. Sabia que iria deixar o campo mas que o campo jamais sairia de mim. Éramos inseparáveis.

"De fato", como dizia minha mãe. Assim aconteceu. O destino me transformou em cronista para contar, recontar, reescrever, inventar, reinventar, metaforizar, pintar o céu dos leitores com as tintas da memória.  Todos os domingos trago uma nova história, uma nova lembrança, repontando o passado que se faz presente e ameniza o futuro. Justamente agora, enquanto escrevo, vejo no horizonte um outro fim de tarde plasmado na moldura na janela. Imagens tão diferentes e tão conhecidas. Então aceno para o boião de fogo com minha mão velha, de pele enrugada, como se reencontrasse depois de muito tempo um querido amigo do peito...

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