A história de Perinha

A história de Perinha

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Só posso dizer que ela era linda. Toda branquinha com umas manchas pretas pelo corpo. E um olhar... Ah, que olhar meus amigos. De um jeito que primeiro pedia leite , depois colo. E era brincalhona, faceira, tão alegre que foi o primeiro ser que de fato me fez rir. Uma ingenuidade animal e serena. Ganhei a Perinha de um vizinho, pois a mãe dela e seus irmãozinhos tinham morrido no desabamento de um galpão. Foi por isso que a batizei de Esperança, depois passei a chamá-la de Pera e, mais tarde,   Perinha. Era uma porquinha, tinha o focinho vermelho e dormia numa peça que tínhamos ao lado do armazém do bolicho, sobre umas sacas de estopa. Os cachorros a estranharam, mas como era pequena e simpática, nunca a incomodaram. Mas depois... credo, foi crescendo, virando uma bolinha de graxa muito amada por todos. Ela saía junto da cachorrada, dando pulinhos, a fazer festa,  quando eu descia do ônibus voltando do colégio.

Por que estou contando esta história agora? Porque a Perinha é a primeira coisa que me vem à mente quando penso na morte. Morávamos na beira da estrada e uma manhã a arteira foi atropelada ao tentar ir fuçar do outro lado. Disseram que foi uma caminhoneta que andava em alta velocidade, levantando poeira do chão. Quando cheguei em casa, a mãe me avisou e alertou que a coitada estava no galpão, muito  machucada, mas ainda viva. Lavei-a para tirar o sangue seco, mas pela aparência tinha sofrido múltiplas fraturas, abria a boquinha e os olhos agonizando.  Ah, os olhos, pareciam que pediam socorro. Então vi a cara da morte pela primeira vez. Fechou as pálpebras grandes e escuras, estremeceu e ficou imóvel, como se tivesse suportado a dor só para me ver antes de morrer. Eu era apenas uma criança, comecei a chorar convulsivamente e saí a caminhar pelo mato de eucalipto,  fiz voltas, fui até o açude e depois voltei, resignado. Enrolei a Perinha nas estopas de sua cama e a enterrei debaixo das amoreiras, onde havia sombra e um cheiro doce de frutas maduras.

As perdas estavam começando. Vi meu cachorro Cacique morrer envenenado se contorcendo de dor e medo. Fui ao enterro do meu amigo Paulinho, o primeiro parceiro que perdi, tão jovem, vítima de um acidente. Porque para mim, amigos, a perda de um amigo, seja ele bicho ou gente, sempre foi igual, sem diferença, o senhor e a senhora entendem? Ah, e foi muito dolorido olhar para o corpo do velho pai estendido dentro do caixão, sabendo que tínhamos que ajudar a mãe, a partir daquele instante, a superar a dor, ter que trabalhar mais e seguir em frente com nossas vidas.

Por isso hoje celebro a vida todos os dias. Pois, apesar de tudo, estamos vivos. Quando me deito, antes de dormir, lembro de todos os amigos e parentes que se foram antes de mim e sei que estão me esperando em algum lugar. A lembrança deles me conforta, mesmo nos dias mais plúmbeos, tristes e vazios. Parece que uma parte de suas vidas continua em mim de alguma forma. Sou um tanto eu e muito eles, e somos a vida assim ajuntados até o fim dos dias. A  mesma vida singela, simples, reta, colorida, linda, doce e feliz que eu enxergava no meigo olhar da Perinha.

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