Alma andante de tropeiro
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Apeavam, atavam os cavalos nos cinamomos e entravam na bodega. Eu os esperava na porta, faceiro, pois eram alegres e brincalhões. Seu Neto pedia um aperitivo de canha, um copo pequeno e o filho, um guaraná. Eu os servia e ficávamos conversando, os dois me contando suas aventuras com as tropas que costumavam repontar para a "Charqueada", como chamávamos o frigorífico. Muito tempo atrás era mesmo uma charqueada, mas ficara o costume e o nome. Viviam juntos, os dois, pelos caminhos ermos do Planalto, pelos corredores sem fim, dia e noite. Seu Neto tinha uma casinha simples no arrabalde da Vila Rica, onde morava a esposa, dona Antônia. O casal de filhos já adultos, tinha batido as asas, "se foram" como dizia, para outros pagos, ganhar a vida. O tropeiro fora morar na cidade justamente para que os filhos pudessem estudar "e não passar os sacrifícios de um tropeiro".
O Pelado não quis estudar de jeito nenhum, preferiu seguir o ofício do pai, como se precisasse pagar um favor. No segundo ano primário, pediu para acompanhar o pai nas lides. "Esse guri nasceu pra viver comigo mesmo", conformou-se o velho tropeiro e, assim, fizeram uma vida juntos. Um ajudando o outro. O velho, ensinando ao guri as artimanhas da atividade, o guri ensinando ao velho que ainda era possível ser guri de novo. E, apesar de parecer o contrário, o Pelado era flor de sabido. Gostava de ver as figuras em meus livros escolares que mostrava a ele nas horas em que seu Neto proseava com meu pai nas tardes domingueiras. Ele se animava , indagava o nome dos lugares, das cidades grandes, das imagens de botânica, de ciências e do corpo humano. Depois emudecia, mirava vazio e eu, sem saber o que fazer, guardava os livros e ficava sentado ao seu lado, solidário em seu mutismo campeiro.
Seu Neto e o Pelado foram criaturas raras que conheci no tempo de bodegueiro. Foram felizes na culatra das tropas até serem engolidos pelo progresso e pelos caminhões boiadeiros. Seu Neto morreu de velho, sentado em frente da casa escutando Gildo de Freitas. O Pelado se empregou num aviário e aos finais de semana participa de rodeios. Na última vez que o vi, abraçou-me com os olhos encharcados e pediu: "Conte no jornal um pouco do que fizemos". Conto sim, Pelado, porque jurei que faria isso e porque há muito me tornei um tropeiro das palavras.