Das singelezas

Das singelezas

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Sou avesso ao luxo porque brotei das singelezas. Do barro, da pedra, do olho d`água. Prefiro dormir sobre os pelegos, num galpão de chão batido, do que numa cama de mola com lençóis de seda. O requinte me constrange porque fui forjado entre  simplicidades, nos rigores, por entre as folhagens, nas miudezas dos isolamentos, andando a pé ou no lombo de um matungo, pelas várzeas,  catando lenha na mata, bebendo apojo em mangueira. Quando menino, não tínhamos chuveiro elétrico, era banho no açude e, no inverno, aquecíamos água no fogão e nos lavávamos num bacião de alumínio oxidado. O tempo passou, mudamos de hábitos, mas conservo esse jeito terruño de bombear a vida pelos avessos, nos desvãos, enxergar o mundo de borco. Gosto do causo espichado, contado despacito ao pé do fogo. Uso a tecnologia por imposição do progresso e da profissão, mas ela, confesso, nada me ensina sobre o essencial. Isso, aprendi por detrás do balcão de um bolicho, no meio de gente xucra mas de conversa clara e reta, sem meias palavras, sem hipocrisia, ironia ou mentira.

Almoçávamos debaixo dos cinamomos, na frente da casa, na beira da estrada real. Comida simples, arroz, feijão, mandioca, de vez em quando carne de galinha ou gado. Aos domingos,  a mãe fazia um assado de porco no forno, acompanhado de salada de maionese e tomávamos guaraná, cuja garrafa deixávamos refrescando dentro do poço, atado num saco de estopa pelo velho laço de doze braças que o finado Lara, o gaiteiro, deixou-nos de herança quando morreu. Escutava música à noite num rádio Phillipps, de quatro pilhas. Dele saíam chamamés, milongas e tangos argentinos que me inebriavam. Naquelas noites quentes e estreladas de janeiro ficava remexendo no dial de ondas curtas achando emissoras "hermanas". Quando seu Lara foi morar no "galpãozinho", como o chamávamos, me encantei com os divinos acordes de sua mágica gaitinha de 8 baixos.

Éramos pobretões, mas penso que fomos felizes. Pela manhã ia no colégio,  à tarde, carroceava os "ranchos" do bolicho até a casa dos clientes que tinham "caderneta". De noite, atendia no balcão.  O pai dizia que um homem precisava apenas ser trabalhador e honesto, se possível,  estudar, "para não sofrer tanto". Ele me ensinou que a gente leva uma vida inteira para ser chamado de honesto "e apenas um segundo para virar ladrão para sempre".  Por isso, não nos deixava, eu e meu irmão,  chegar em casa com brinquedo emprestado ou coisas achadas na estrada. "Coloquem onde estava, o dono virá buscar". E completava: "De tanto achar coisas, o sujeito começa a pegar o que não está perdido".  Aquilo me chateava, mas o tempo revelou que ele tinha razão.

No final do ano tinha churrasco. O pai sempre comprava um chibo numa fazenda vizinha. Escolhia o mais viçoso, laçava e maneava com uma habilidade impressionante. No Natal, o cuera, que não bebia,  tomava um copo de vinho tinto. Faceiro, fazia umas trovas engraçadas de improviso. Eu e o mano ficávamos sentados ao seu lado e depois dormíamos cada um com a cabeça numa de suas pernas, sobre a bombacha encardida, com cheiro de fumo em rolo. No outro dia a vida seguia. Igual, doce e singela, pura como a água que escorria nas sangas da Vila Rica.

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