Algo restará de mim

Algo restará de mim

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Quando eu me for, quando esses meus olhos cansados de tanto Pampa e lonjuras se escurecerem, quando meus braços quedarem-se sem forças, quando minhas pernas nada mais puderem aguentar, quando finalmente este coração interiorano, simples e humilde, deixar de bater, quando meu sangue missioneiro gelar nas veias, quando meu corpo pairar sem vida sobre o catre ou outro lugar qualquer, mesmo aí, nesse momento, há de restar algo de mim. Quando o vento se infiltrar por entre as figueiras nessas noites de luar, trará os versos que escrevi nas outras noites que passei insone naquelas madrugadas largas da minha distante Vila Rica. Serei o barulho do arvoredo nessas noites de primavera, o farfalhar dos braços longos das taquareiras, o gemido prateado dos cinamomos que dobrarão os cílios tristes. Serei até o clarão da lua cheia se esgueirando por entre as pitangueiras lá, perto do açude, o coaxar dos sapos, o cantar triste das seriemas e o voo das andorinhas que vão voltar, todos os anos, em cada verão que surgir por estas bandas. Ou então, serei apenas o lume tênue da lamparina a velar teu sono nas madrugadas campeiras.

Restará de mim o gosto do mate amargo na boca dos gaudérios que cruzam o pago, indo e vindo, ao trote estirado, sonhando com novos dias e noites. Ah, eu estarei em cada tiro de laço, num pealo de sobrelombo, em cada gineteada de rodeio, eu estarei na culatra das tropas, no poncho dos tropeiros nos dias de aguaceiro,  em cada entardecer em nossos corredores sem fim dessas várzeas largas, nas grotas, no chiar das chaleiras sobre os fogões campeiros que ainda existirem. Todos os anos, nos acampamentos, serei o cheiro da graxa da costela gorda a subir pelos ares, a fumaça que deixará tudo encoberto pela bruma do tempo. Estarei, por certo,  no tilintar das esporas, no retumbar das botas dos moços dançando pelos assoalhos  ou no arrastar de alpargatas dos velhos nas tábuas apodrecidas das casas velhas que ainda restarão nessas cidadezinhas interioranas.

Restará de mim um cheiro de canha nos bolichos no fim da tarde, ali na hora do lusco-fusco, quando se reza a Ave-Maria, quando o campeiro enrola o laço, desencilha no pátio ao lado do galpão grande. Eu viverei nas alegres ou tristes rodas de mate. Eu estarei em cada ponteio de milonga, nos chamamés,  nos gritos do sapucay de guerreiro, no gemer dos eixos das carretas remanescentes e até nos velhos rodados  atirados pelos oitões dos ranchos e galpões esquecidos. Ah, eu morrerei tantas vezes, mas voltarei, te asseguro, porque serei tantas outras coisas por esse rincão, transmudado, tornado chão, água e vento, por aí, por aí, por aí....

Porque então serei o vento, a noite e o dia, o sol de janeiro e a lua de outubro. Serei o gado e os cavalos pastando nas tardes longas, ao lado do açude, perto do rancherio. Serei as estações que vêm e voltam, sempre, ano após ano. Então, serei outra vez o passaredo trazendo o verão. Saiba, eu estarei sempre por aqui, ao teu redor, te embalando e te cuidando, te mirando de longe. te protegendo sempre dos perigos do mundo.  Porque ao contrário da morte, serei a vida, todos os dias, na vastidão de minha eternidade breve...

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