A barranca do rio

A barranca do rio

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Eu vou trançando meus dias

Como um velho guasqueiro

A vida é linda, parceiro

Mas tem lá os seus desvãos

Carrego aqui no coração

um pesqueiro quase vazio

ou uma faquinha sem fio

Voo de garças e perdizes

Então lambo as cicatrizes

nesta barranca de rio...

A barranca do rio

Hoje, olhando para o Guaíba, me transporto para os dias da infância na Vila Rica. Eu via, assim como vejo aqui, muitas imagens na corredeira do rio, o sangue e o choro do tempo diluído nas águas. O meu avesso era o Pampa transformado em céu esverdeado. Eu assobiava nos vazios, pelos vãos dos dias, nos silêncios das madrugadas que escondiam alegrias e dores. Era rio? Não, era só uma sanga, mas chamávamos de rio. Era meu confessionário, sala secreta de pensamentos, reflexões e leitura, onde os passarinhos recitavam minhas dúvidas. Era para lá que ia quando sobrava um tempo, às tardinhas, depois de cumprir a obrigação diária de buscar as vacas de leite, separá-las dos terneiros, de dar ração, buscar gravetos para a mãe principiar o fogo no dia seguinte. Era um tempo exíguo, curto, mas era meu, quando conversava com as águas, plantas e pássaros. Minha alma voava, depois voltava e eu também retornava, porque precisava ajudar no balcão do bolicho.  Mas ali descansava e viajava para longe, muito longe.

Um homem pode ser natureza, ser água, terra e ar, mas precisa ser fogo, ser pedra, ser poesia e, sempre, visionário. Matear com a esperança. Isso eu aprendi lá na barranca, pois era parte dessa paisagem. Desde pequeno sabia disso, era um lagarto ao sol, uma andorinha lá em cima, uma formiga cá embaixo, sonhando nas finitudes. Eu me solidarizava com a solidão dos bichos, com a solidão das plantas balançando ao vento, dos musgos, dos sapos, dos cuscos, das florezinhas sem nome e  tão lindas, com as borboletas coloridas e com o canto das cigarras. Lá, na infância, havia o gosto das pitangas maduras, o que agora já não sinto, as pitangueiras e as amoreiras ficaram lá. Na distância ficaram os sabores doces que com o passar dos anos foram escorrendo das minhas mãos. Eram doces porque eu era apenas um guri.

Tudo passa, tudo se cala, tudo é vento sobre a noite. Eu era um guri, um guri e seu tempo, e o tempo nele navegava no remanso do rio, da sanga que era um símbolo e uma lágrima que era dele e hoje é minha. Tão juntas e separadas, abraçadas. Tudo voa e passa, o tempo, as lágrimas, transformadas em verbo, inatingíveis pela palavra  que persegue o passado, que o laça e devolve em forma de luz. Minha saudade está lá, escondida no fundo de um retrato, de uma luz fundida no crepúsculo das margens. Mirava a outra margem, a minha terceira margem do rio. Eu ficava dentro do meu corpo, como uma faca dentro da bainha.

Ando fazendo muitas perguntas para a vida que, infelizmente, nunca responde. E quando responde é em forma de novas perguntas. Eu vim embora, mas parece que sigo lá, solito, sentado na barranca do rio.

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