Ensina-me a sonhar!
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Sem empáfia na parada
Que escrever "Campereadas"
É a melhor coisa do mundo
Feito um mistério profundo
A graça que Deus me deu
Que ainda não se perdeu
Deste destino haragano
Que inventei para o Verano
É que o próprio causo sou eu...
Ensina-me a sonhar
Muitos anos depois, numa manhã de domingo, enquanto mateavam na varanda, olhando a várzea estendida e o umbu solitário, ao longe, dona Rosaura olhou para Verano, tomou coragem e fez a pergunta que acalentava há vários anos:
- Ensina-me a sonhar?
O gaúcho, agora já velho e doente, sorveu bem devagar o gole do mate, repetiu o tique que tinha de repuxar o canto esquerdo da boca e ficou pensando. Então disse com toda a sinceridade que seu cansado coração permitia: "Recebi esse dom de minha mãe, dona Serena, que por sua vez ganhou de sua mãe. Pelo que entendi, comigo termina a dádiva, mas posso tentar. Mas serão sonhos diferentes, minha flor..."
Haviam ocorridos tantas coisas depois que Verano retornou à sua terra trazendo Rosaura e muita plata no bolso das bombachas. Compraram uma estância, tiveram filhos. A pedido da mulher e dos amigos, publicara dois livros de poemas que fizeram grande sucesso. Os jornais publicavam resenhas sobre sua poesia, "o domador que virou poeta", mas nunca souberam dos sonhos. Isso tinha ficado no Uruguai, na terra da sua avó e de sua mãe. "A poesia é uma espécie de sonho", dissera certa madrugada de lua para Rosaura. Agora ela queria também sonhar, para saber a hora de prepará-lo para o outro mundo, saber o futuro dos filhos. Porém de uns anos para cá, ele não falava mais nada.
Mas como todos sabem, o amor é maior que tudo. Quem ama sabe que esse sentimento corta todas as barreiras, é como colocar os bois na frente das carretas, inverter cavalos contra cavaleiros. Por amor, Verano ensinou passo a passo a preparação para os sonhos. O que se deve comer, o que nunca se deve ingerir, os pensamentos necessários antes de se deitar, o tipo de colchão, de travesseiro, de músicas que é necessário ouvir. E tantos outros pormenores. "Ah, e o mais importante, sempre interpretá-los ao amanhecer, em jejum, antes de fazer qualquer coisa". De acordo com sua profecia, o mais importante era a interpretação, pois os sonhos têm a intenção de confundir, nunca mostram realmente o que são.
Foi então que na entrada de um novo verão, como já havia sonhado, pressentiu que a hora havia chegado. Arrastou a cadeira de balanço para a varanda, assobiou para os cuscos, repassou sua vida desde guri, cantarolou baixinho uma milonga e, segurando a mão de Rosaura, recitou seu último e derradeiro poema antes de morrer:
"Um lugar só é habitável e habitado, quando dele alguém sentir saudade. Um homem só é realmente homem, quando nele ver sua precariedade.
Um livro só é definitivo, quando faz uma pergunta grave na página final. Uma fotografia só é importante, quando remete a imagem ao seu estágio inicial.
Vou me inventar num sonho de um verso argentino, meio borgeano, meio teatino.
E depois de tudo, vislumbrar o Pampa viandante,
o índio, o negro, o gaúcho e a vida errante,
voltando ao pago, em forma de menino."