O destino mora no coração dos homens

O destino mora no coração dos homens

publicidade

Era um homem miúdo, esguio, as bombachas sobravam nele. Até as camisas de mangas compridas e de cores vivas, sempre abotoadas nos punhos, pareciam ser mais largas do que deviam. Quando saltava, tinha-se a impressão que um balão se ia para o ar, mas não, era apenas Idalécio Santobueno,  o Leco da Chula, como era conhecido por aquelas nossas bandas. Que dançarino, meus amigos, igual nunca mais vi. Eu devia ter o que? Dez, 12 anos, não mais que isso, e adorava vê-lo naquelas apresentações de tirar o fôlego nos rodeios da Vila Rica. Apesar de ter sido criado no campo, era um rapaz de gestos imponentes e elegantes, que sapateava com a alma. Havia em seus olhos um brilho negro de pássaro que voa, aterrissa e abre as asas e mira com amor o seu pago. E dança, dança para mostrar que todos os povos têm suas artes.  A Vila Rica teve Leco.

Dia desses, saindo de uma sessão de cinema, lembrei-me do Leco da Chula. O filme retratava a vida de um bailarino de ballet. Pensei  que Leco poderia ter ganhado tanta distinção e prêmios, tanta reverência, tanta fama e fortuna como aquele bailarino russo retratado no filme. Ah, o Leco também tinha lá seus problemas, diziam, semelhantes ao do personagem do filme. Ah, foi realmente uma pena o mundo não ter conhecido nosso Leco, cujos passos de dança folclórica eram magistrais. Dizem que trouxe de berço, aprendeu dançando sobre um espeto debaixo de uma ramada na fazenda onde vivia com a mãe, cozinheira. O CTG o buscou e deu-lhe uma professora, mas o Leco era indisciplinado, criava seus próprios números e, às vezes, não cumpria o regulamento proposto pelas entidades tradicionalistas. Dava um show e todos aplaudiam de pé, mas como faltavam itens do regulamento, era desclassificado. Ele não se importava  "Danço com minha alma, meu regulamento é meu coração", disse-me um dia no bolicho lá de casa, quando perguntei-lhe porque perdera a chance de ficar famoso.

Anos depois, encontrei-o numas carreiras na costa do Jacuí. Vivia como tratorista, tinha comprado uma casinha na cidade e me apresentou sua esposa e as duas filhas gêmeas.  Naquele domingo, depois do churrasco assado na vala, escutamos um alarido. O povo havia reconhecido o Leco e exigiu uma apresentação. Foi um espetáculo. As pessoas batiam palmas acompanhando a gaita e o rústico bailarino planava por sobre a grama e a terra colorada, feliz, rindo, de olhos fechados, fazendo evoluções e coreografias desconhecidas.  Nunca o esqueço, porque é uma lenda do pago. Ao entardecer, ao dar-lhe um abraço, disse-me: "Vou te confessar um segredo, nunca parei de dançar a chula, porque sou um chuleador por natureza, desde criança. Sem ninguém saber, danço todos os dias, solito, no fundo das invernadas, porque essa é a minha vida. No coração de cada homem está seu destino..."

Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895