Meu medo é ser pelegueado pelo destino

Meu medo é ser pelegueado pelo destino

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O bolicho ficava à beira da estrada real. Era caminho e todos sabem que é pelos caminhos que andam os destinos. Essa estrada levava ao frigorífico da Vila Rica e, por isso, por ali passavam as tropas de gado que eram tangidas para o abate. Algumas eram de perto, outras de longe. Nessas últimas os tropeiros traziam junto, na culatra, algumas ovelhas para irem carneando durante os dias de trabalho. Não sei porque, mas sempre me apiedava demais por aqueles bichinhos que caminhavam tristes atrás de todos, de cabeça baixa, cansados, parece que já conformados, pressentindo o triste fim. Eram ovelhas, haviam sido criadas para o sacrifício, mas meu molengo coração nunca aceitou isso. Até hoje.

Certa feita contei minha aflição para seu Neto, um mulato velho amigo de meu pai. "É o destino", disse-me ele, "Cada um que nasce, bicho ou gente, vem a este mundo com o seu". Ele havia sido tropeiro e tinha passado de tudo na vida. Então fiquei pensando, mas que injustiça, uns nascem ricos, em berços dourados, limpinhos e cheirosos, com tanta gente que os cuidam. E outros tão pobres, solitos, sofrem tanto, passam frio e fome, sem amor e carinho, e o que é ainda pior, alguns seres nascem apenas para morrer. Vendo -me chorando, pois era apenas um guri, seu Neto tentou me animar: "São bichos". "Mas bicho também tem alma, seu Neto",  retruquei.  Então, explicou: "Mas é uma alma que já vem preparada, bicho não pensa".  Mesmo assim, nunca me conformei. Minha mãe, dona Mirica, também não aceitava matar animais. Só galinhas. Não sei porque ela decidiu isso, mas jamais deixava matar suas ovelhas, os perus e até uma porquinha que criei guaxa. Ela fazia pães num forno e distribuía para a bicharada. E falava com todos, cada um pelo nome, pois os "batizava" ao nascer.

Meu pai aceitava matar bicho, menos cavalo. "Gaúcho não mata nem come cavalo", sentenciava.  "Por que?", me encorajei a perguntar um dia. "Porque o gaúcho e o cavalo são uma coisa só, um não sabe viver sem o outro".  Ah, então era isso, nem falei nada, não compreendia aquilo, uma coisa que vim a entender muito tempo depois.  Na época, me preocupava era com a questão do destino. Achava que podíamos nos rebelar e mudar os desígnios, enveredar num outro rumo, trapacear e enganar a morte. Um dia, subi num trem, mudei de ares, parei na Capital, virei jornalista e hoje conto histórias de gaúchos, de tropeadas, de tempos que se acreditava em assombrações, uma época de sesteadas sobre o carnal dos pelegos debaixo das ramadas. Histórias de bolichos, de pescarias, de caçadas e de pitangas maduras colhidas nas tardes modorrentas de verão.

Porém, mesmo passado tantos anos, as dúvidas da infância estão lá, escondidas pelos meus internos.  Ainda guardo o medo de virar ovelha e ser pelegueado pelo destino...

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