O carroção das melancias

O carroção das melancias

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Quando penso que já falei de tudo o que passei naqueles verdes anos da Vila Rica a vida vem e mostra-me que não. Quando a gente é pequeno o tempo custa para passar,  mas depois parece que voa. Então recuperamos as lembranças perdidas nos socavões da memória. E são elas que nos fazem sorrir num período em que as lágrimas teimosas vivem a nos importunar. Ah, meus amigos, cada recuerdo que chega parece um bálsamo, me recupera, me faz sentir de novo o gosto de olhar para os campos a se perder de vista, a sorver um amargo com mais gana. As lembranças parecem nos amadrinhar nessas gineteadas brabas no lombo do destino.

Lembro das tardes quentes de verão em que, depois do almoço, comíamos melancia fresca à sombra, ao lado da casa. Esperávamos o carroção de quatro rodas puxado por uma parelha de cavalos, um tostado e o outro tordilho, do seu Pedro Sattes, que morava  numa chácara no Cerrito e que produzia melancias para vender na cidade.  Saía cedo da chácara e ali pelas nove horas  passava defronte à nossa casa. Sempre fazia uma parada "estratégica" em nosso bolicho. Nossa mãe, Almerinda, a Mirica, era uma profunda conhecedora de melancia madura. Com o nó do dedo indicador ia batendo nelas até gritar: "Essa".  "A que fizer o barulho mais ôco é a mais madura e doce",  esclarecia. Era verdade, nunca errava. Eu já estava com um saco de estopa na mão, ensacava a fruta e já a colocava no poço. Então esperávamos as horas passarem e, no almoço, nem sentíamos o gosto da comida.  A mãe nos olhava desconfiada e alertava que só comeria melancia quem "rapasse o prato".

Mais tarde,  debaixo da sombra larga e amiga dos cinamomos e das laranjeiras, começava a farra. Dona Mirica vinha com uma comprida faca carneadeira na mão, atorava a melancia ao meio de um só golpe e fazia fatias perfeitas. Então íamos devorando os pedaços e cuspindo as sementes na terra vermelha, a maioria delas virava comida de galinha. Era um alarido, guri comendo melancia e galinha comendo sementes. No final, a Mirica oferecia um golinho de cachaça para "fazer a digestão". Eu, mais velho, inventava que estava passando mal para ganhar mais um trago até que a mãe, esperta, entendia e guardava a garrafa. "Um homem não pode se entregar para a bebida, sou bolicheira e sei muito bem", ensinava.

E assim, meus amigos, passávamos as férias de verão. Uma pescaria no açude, um banho de sanga, um joguinho de bola no final da tarde, uma fruta madura depois do almoço.  Sou nostálgico e, recordando tudo isso, sinto meus olhos se encharcarem e um cerro se agigantar em minha garganta. Só de lembrar como a vida,  naquele tempo, era simples. E doce, tão doce como aquelas fatias de melancia do carroção encantado.

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