O homem da alma rasgada

O homem da alma rasgada

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Costumava apear da rosilha anca de vaca sempre à tardinha, ali pelo lusco-fusco, àquela hora em que o silêncio parece de igreja e se ergue sobre o campo depois da algazarra da bicharada. Até o vento emudece, não se percebe nenhuma brisa. Então arrastava suas chinelas de borracha feitas à faca, com tiras de couro, rumo do balcão. Eu olhava a bombacha puída e a camisa preta surrada, com um rasgo no ombro sobre a costura. Tinha outra camisa também rasgada, de uma cor que lembrava o marrom, mas agora nem cor mais tinha. Era pobre, vivia de changas nas granjas e de pequenos serviços nas casas da Vila Rica. Também fazia e vendia gamelas. Pequenas, médias e umas muito grandes. Por isso, o chamavam de Julinho Gamela, o homem da camisa rasgada.

A quantidade de compras dependia dos pilas que arrumava no dia. "Vivo com minhas pobrezas", dizia, exibindo um sorriso largo, típico daqueles que não têm contas a pagar. Viúvo, os filhos haviam se mandado há muito tempo e agora morava solito num ranchinho beira de estrada, perto da passagem dos trilhos em São João do Barro Preto. Era alegre e satisfeito. Apesar disso, quem o conhecia bem sabia que era um homem ferido pela vida, marcado a ferro e fogo pelo destino. Havia sido um injustiçado no decorrer dos anos, desde que começara a trabalhar em lavouras de arroz nas várzeas de Cachoeira. Ainda rapazote, fazendo taipa numa noite de luar, a pá tocou num objeto estranho. Achou que era pedra e com uma alavanca tirou da terra um grande pote de barro. Honesto, entregou ao patrão. Este, ficou ainda mais rico, pois dentro haviam muitas moedas de ouro, prata e outros objetos antigos e preciosos. A recompensa foi apenas um cavalo bragado e um chapéu preto.

Depois, na costa do Uruguai, quando chegou ao posto de capataz de estância, após sofrer muito no lombo do cavalo dia e noite, a propriedade foi vendida. O novo dono mandou-o embora e, mais uma vez, Júlio Gamela saiu pela estrada carregando nos tentos apenas sua esperança e assobiando uma milonga triste. Veio parar ali nas charqueadas de Tupã, onde aprendeu vários ofícios de salga. Quando o conheci já era velho, tinha as mãos cheias de cicatrizes e muitas quebraduras nos braços. Meu pai o chamava para castrar terneiros, pois tinha "mão boa" e nenhum animal bichava. Na cabeça, mantinha o velho chapéu preto do tempo de Cachoeira. "Só pra lembrar que podia ser hoje um homem rico", brincava.

Muitos anos depois passei no lugar onde ficava seu ranchinho. Não havia mais nada, só um casebre em ruínas, abandonado. Por isso escrevo em favor dos humildes, dos desamparados, dos que andam pelo mundo montados numa rosilha magra e com um chapéu preto furado na cabeça. Essa gente invisível, sem presente nem futuro, gente que veste bombacha puída e, invariavelmente, carrega dentro de si a alma estropiada.

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