Alma desnuda

Alma desnuda

Sinto-me um forasteiro que, depois de longa tropeada, desencilha sem ser reconhecido. Já não perguntam mais por mim

Paulo Mendes

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Sempre que volto à Vila Rica, minha alma se desnuda por inteiro. O poncho do tempo retorna para a mala e aparece o corpo sem roupa, límpido e natural. Eu me vejo nos galhos mutilados do arvoredo, nos campos limpos, sem cercas e matagais, nas várzeas aterradas onde viviam as preás e onde nem os gritos estridentes dos quero-queros se escutam mais. Resistem os bem-te-vis, os sabiás, as palomas e as torcaças. O progresso chegou e despiu de vez a terra que antes vicejava feliz e quieta, os campos exibiam a grama forquilha e, pelas macegas, nasciam terneiros, borregos e potros. A bicharada crescia correndo de cola erguida pelas coxilhas esverdeadas. Ah, minha terra querida, sofremos juntos, porque tudo o que fizeram contigo sinto eu pelos meus internos, pelas minhas veias e nervos, músculos e ossos. Dói ver-te assim revirada, pisoteada pelas enormes rodas de tratores, plantadeiras e uma parafernália de equipamentos.

Nos galpões não se sente mais o cheiro do suor dos fletes, não se enxerga mais um grupo de pavenas de pilchas puídas tomando mate ao redor dos fogões campeiros, nem arreios sobre os cavaletes, cordas penduradas, laços de doze braças enrodilhados no chão de saibro, nem se ouve mais os causos de assombração, boitatá e patacões de ouro enterrados em marmitas de ferro. Nada, só vigora o silêncio por entre máquinas gigantes e o cheiro do salitre de adubos, fertilizantes, veneno para isso e aquilo, sobras de óleo diesel, muitos galões e latas, sementes, bombonas plásticas de todos os tamanhos, embalagens, pneus velhos, restos de maquinário estragado, tetos metálicos. Meu Deus, cadê os ranchos de pau a pique barreados, com tetos de santa-fé, de zinco e telhas?

Onde foram parar os ventos alegres que embalaram minha infância na saudosa Vila Rica? A minha terra de outrora, onde se vibrava com os cavalos bons de pata no antigo Jockey Club naqueles ensolarados domingos. Eram gritos de incentivo desde a partida até a chegada. Onde estão os campeiros autênticos de pingos encilhados a preceito, as churrascadas em fogo de chão, o futebol nos campinhos ao lado das taquareiras? Vi gurizada treinando tiro de laço em bois de madeira sobre rodas ao lado das lavouras, em cenas que retratam os dias que estamos vivendo. A imitação da representação ou a caverna de Platão do Pampa moderno. Sem luzes, apenas sombras.

Lá fora, os galhos descarnados mostram minha alma em carne viva, despojada do sonhadouro. Minha terra parece ser menos do que um lugar de ar, água e chão, mas um vau de vago e valor, onde se misturam abstração, sopro e espanto, um novo final de tarde e nova madrugada. Sinto-me um forasteiro que, depois de longa tropeada, desencilha sem ser reconhecido. Já não perguntam mais por mim, já não me reconhecem as laranjeiras das taperas, as avencas das velhas casas, os trancelins dos potreiros. Sobra a fugaz vontade de encontrar o passado, a reconstrução impossível estilhaçada pelo vento veloz. Retorno e o que fica no fundo do mato, na costa do rio, entre a despedida e regresso, é a consistência impalpável do aceno ou a beleza de um verso dentro do orvalho. Fica no movimento circular do tempo e do espaço, dorme na fresta invisível da saudade.


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