No cano da bota

No cano da bota

Hoje penso como a gente perde tempo, pois na verdade o que queremos é o que está ao alcance da mão. É disso que precisamos

Paulo Mendes

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Meu sonho de guri campeiro era ter um par de botas reluzentes, daquelas bem lustrosas, que faziam bonito em rodeio, aos domingos em bolichos enfiadas nos pés de gaúchos abonados e remediados. Eu me criei de pés descalços, às vezes calçando numa chinela de borracha e, quando mais graúdo, um par de alpargatas que usava tanto que ficavam barbudas. Mas queria mesmo era um par de botas. Quando guri nunca tive, criança muda de número rápido e seu Mendes não tinha dinheiro para ficar mandando fazer botas de couro a todo o momento. Na verdade, para ser honesto, ele me comprou um par quando era bem pequeno, tenho até uma foto em preto e branco com elas. Depois parou, o salário dele não permitia esses luxos. Com o passar dos dias e dos anos, as prioridades vão mudando e não lembro mais de ter pedido botas novas. 

Dona Mirica, minha mãe, usava botas de borracha e costumava ter uma faquinha prateada dentro do cano. “Para qualquer precisão”, dizia a bolicheira. À noite, mantinha guardado um facão debaixo do travesseiro. Nós, os campeiros, sempre fomos desconfiados. “Um gaúcho prevenido vale por dois”, brincava a Mirica, retrucando um verso de Teixeirinha, seu cantor referido. Seu Mendes, por outro lado, gostava de Gildo de Freitas. Eu gostava dos dois, cada um com seu estilo. Éramos simples, trabalhávamos do amanhecer ao pôr do sol, todos os dias, um sim e outro também. Vivíamos sem luxos, mas comida nunca nos faltou e a prioridade era a educação dos guris, no caso eu e meu irmão Luiz, quatro anos mais novo. Não tínhamos botas de couro de cano alto, mas isso nunca importou tanto. 

Esses dias, o amigo Alex Silveira, poeta e compositor de São Gabriel, me brindou com umas fotos campeiras e lá estava um cano de bota pendurado num varal me lembrando as botas que sonhei na infância, as botas que via no bolicho. A gauchada de bota e bombacha que era tão comum naqueles tempos de antanho, embora no bolicho grande parte da clientela usasse chinelas de borracha, alpargatas e sapatos gastos. Era gente humilde, que me falava de seus sonhos e frustrações. Eram planos como arrumar um emprego, construir uma casinha, encontrar um amor, essas coisas. Hoje penso como a gente perde tempo, pois na verdade o que queremos é o que está ao alcance da mão. É disso que precisamos. Nada mais.

Agora estou aqui, caminhando por essas ruas da Capital, de tênis, calças jeans, vendo ao longe as águas do Guaíba. Há pouco, passou por mim um xiru pilchado, de bombacha e botas, chapéu de aba larga e lenço colorado no pescoço. Uma fina estampa. Imediatamente lembrei de meu pago, da gauchada campeira sem botas, sem alpargatas, sem nada. Somos como as botas, somos usados até o fim, até o solado gastar, aí trocam, fazem uma meia-sola, ficamos como o cano. Depois, quando de nada de nós prestar, fazem do cano um bocó para guardar remédios, agulhas, tentos, cravadores. Andamos debaixo dos pelegos, de lá para cá, ou restamos pendurados num caibro do galpão para sermos usados nos dias de chuva fina guasqueada de inverno. Ficamos pendurados numa árvore, restos de dias e noites que foram lindos. Ah, cano de boca, só tu mesmo saberá contar a história do tempo, do couro e da memória. 


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