Chiquinho Café no Bule

Chiquinho Café no Bule

O coração corcoveia dentro do peito, um cerro se forma na garganta e até um cisco matreiro teima em se instalar dentro do olho

Paulo Mendes

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A bocha deixava a mão do atirador e percorria a distância no ar fazendo uma parábola enquanto dava várias voltas sobre si mesma até bater na bocha adversária. “Tem que ter café no bule”, gritava irrequieto o Chiquinho, enquanto vibrávamos com mais uma bochada “daquelas”. Como companheiros de dupla éramos praticamente invencíveis naquela cancha de areia e tabatinga, socada ao lado do bolicho, feita pelo finado Orcy Dal Forno, nosso vizinho. Na verdade, era de barro batido e depois vinha uma pequena camada de areia fina por cima. A cada partida, passávamos um rodo de madeira e borracha para aplainar e fechar alguns buracos. A cancha ficava lisinha e pronta outra vez. Chiquinho era atirador, enquanto eu era especialista no ponto, soltava a bocha devagar e a fazia deslizar até se encostar mansamente no balin e ali sossegar, enquanto prendia o grito também: “Fica quieto balinzinho, que esta bocha é do Paulinho”. E todos riam a mais não poder. 

Os domingos eram divertidos no bolicho beira de estrada, frequentado por gente humilde e trabalhadora, tratoristas, peões por dia, gente da periferia, gente do campo, a variedade era grande, mas o perfil era de pessoas simples e bonachonas. A farra começava cedo da manhã, pelas 10h, e, se o tempo estivesse bom, a cancha já estaria arrumada nesta hora. E ao meio-dia, 13h, acendíamos um fogo de chão e íamos assando nacos de carne, linguiça e legumes que cada um trazia. Dona Mirica cozinhava uma panelada de mandioca. “Vão se servindo onde come um, como dois.” Os almoços eram coletivos. Por isso, meus amigos, não suporto a arrogância, a prepotência, aprendi a tratar a todos da mesma maneira. “Deus não olha pra cor da pele”, largava o seu Turíbio. 

Aos domingos ninguém sesteava. Era um pequeno intervalo e logo já se ouvia o barulho das bochas na cabeceira da cancha. “O barulho era tanto que nem escutei no rádio o gol do Claudiomiro”, reclamava meu pai à noite. Na verdade, o velho tropeiro se divertia bastante também com as jogadas, as tiradas, as empulhações e os gritos, mas não admitia, dizia que estava incomodado com tanto barulho. Porém, todos percebiam que era apenas implicância, que no fundo ria e apreciava a função. No final das partidas em que eu o Chiquinho ganhávamos, aproveitava para elogiar o companheiro: “Este Chiquinho é bom mesmo, tem café no bule”. 

Quando volto à Vila Rica sempre passo em frente ao lugar onde vivi tantos domingos. O coração corcoveia dentro do peito, um cerro se forma na garganta e até um cisco matreiro teima em se instalar dentro do olho. E vejo, feliz, dando tiros de bocha, de bombacha arremangada e alpargatas, o meu querido amigo Chiquinho gritando: “Café no bule, café no bule”. É verdade, amigo, é preciso ter muito sustância na alma para suportar esta saudade atroz, e seguir em frente. A vida passa depressa mesmo, mas pelo menos aproveitamos bem aquele tempo que vivemos juntos, hoje é um farolete a nos guiar por novas jornadas. Quando retorno para a Capital, acendo o fogão e faço um café novo. Repenso a lida, planejo e, ao final, concluo que será difícil, mas não impossível. Afinal, venho lá do campo e também tenho café no bule. 


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