De rio, Barranca e amigos

De rio, Barranca e amigos

Um festival que é mais que um encontro seleto da música nativista gaúcha, é exemplo de solidariedade entre os parceiros encontrados.

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Foram quatro dias de programação cultural na costa do rio Uruguai, em São Borja, durante o feriadão de Páscoa. Muita música, shows, exposições de arte e fotografia, declamações, lembranças e alegria para comemorar os 50 anos do Festival da Barranca. Como grafou o poeta e letrista já falecido Luiz Sérgio Metz, o Jacaré, o encontro é um “comício de espíritos”. Em meio a uma natureza exuberante, com destaque para o rio imponente, os amigos charlaram e relembraram de anos passados, dos que se foram para outra dimensão. Ao mesmo tempo, novos talentos surgem, desses que têm formigueiro nos dedos, e a vida vai se renovando a cada ano. Foi um espetáculo de criatividade telúrica e da liberdade estética da arte regionalista sem regras estabelecidas. Junção de língua e linguagem. 

A sensação que havia no ar enfumaçado de sábado era que o velho Uruguai havia entrado em nossos corpos de angueras cansados de tanta estrada e lonjuras. Que tínhamos abraçado de novo o Farelo, o Tio Manduca, o Mango Feio, o Manolo, o Sérgio Jacaré, o Rillo e tantos outros “barranqueiros” históricos. De minha parte, fico extremamente agradecido à Comissão Organizadora pelo gentil convite para participar desta confraternização. Um festival que é mais que um encontro seleto da música nativista gaúcha, é exemplo de solidariedade entre os parceiros encontrados, num local com clima de pescaria, de simplicidade, onde todos comungam de um só ideal, companheirismo e amor incondicional às origens, sem preconceitos de classe social, raça, cor ou atividade. A Barranca une os diferentes. 

Numa charla vespertina, ao lado do bolicho, comentei com os presentes que o espírito “barranqueiro” dava uma lição que poderia ser aprendida pelo mundo, hoje tomado pelo ódio e violência. Destaquei que tinha percebido um cavalheirismo, um sentimento de pertencimento, uma fidalguia, união e camaradagem salutar. Aliás, é bom lembrar que não se vê rusgas e brigas na Barranca. Por vezes, discussões acaloradas sobre temas musicais, concepções de arte, nada mais que isso. Depois, os contendores se abraçam e segue o baile. Então, penso que isto é o que está faltando no nosso cotidiano, principalmente nas cidades, onde um clima de intolerância vem tomando conta de todos. 

De certa forma e à minha maneira, volto ungido pelo espírito do Generoso, o anguera (indígena guarani pagão) que, antes, era taciturno e triste, depois de ser batizado pelos jesuítas, virou dançarino e pimpão. Agradeço aos organizadores, a todos os “barranqueiros”, aos amigos antigos e novos por esta profícua experiência. Se for convidado de novo e estiver em condições, certamente lá estarei. Caso não vá, por uma razão ou outra, saibam que serei sempre grato por ter compreendido a intenção daqueles que, lá no início dos anos 1970, se reuniam para pescar e se divertir, brincar e cantar num pesqueiro de rio. Que a vida precisa ser vivida intensamente e sempre será mais proveitosa e afável ao lado de bons amigos, ouvindo o ronco da gaita de botão, o ponteado do violão e o repicar do pandeiro. Depois, é para as lutas diárias de alma lavada. 

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A canção “Partida”, destacada na edição anterior, é de autoria exclusiva de Mauro Ferreira e não uma parceria. João Chagas Leite gravou a música mais tarde.


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