Os cadernos perdidos (final)

Os cadernos perdidos (final)

Tenho pena de ir embora, mas não morremos, nos transmutamos para nos transformar em memória

Paulo Mendes

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Eu estava satisfeito com as informações que obtivera até ali, lendo os cadernos perdidos de dona Carmelinda Suárez y Ganaderya, a dona Linda. Quando ela falou de sua chegada à Vila Rica, compreendi a história e decidi ir direto ao terceiro caderno, onde ela certamente falava de situações atuais. Estava correto na minha intuição, como vocês verão a seguir: 

“Tudo começou a dar certo no Rincão da Serra. Naquela época, eu era muito jovem, mas tinha bastante experiência de vida. Começaram a falar meu nome em todos os lugares, nas carreiras, nos rodeios, nas ruas e nas casas. Eu tentava modificar uma tradição, uma mulher que se encorajava a assumir sozinha uma estância. Aquilo era anormal. Foi por essa época que surgiu aquele falatório de um cachorro responsável pelo término dos meus namoros com três pretendentes. Isso ocorreu, de fato, mas não foi esse, evidentemente, o motivo. Nunca disse a ninguém, mas na verdade, digo aqui, para quem um dia vier a ler estes meus relatos. Na verdade, nunca tive interesse algum em homens. 

Certa vez fiz uma viagem a Montevidéu e lá consultei com um médico que confirmou, cientificamente, que eu sempre fora um homem. Mas criada como mulher por dom Inácio, eu mesma me convencera e assumira a condição feminina. Ele até me indicou, em Porto Alegre, médicos que poderiam me ajudar na condição psicológica, mas disse a ele que era bem resolvida. Gostava de ser o que era, tinha gratidão pela vida. E assim foi, segui minha vida. Houve, inclusive, uma pessoa por quem fiquei encantada, certa vez, mas reconheci que não devia levar aquele amor adiante. Não seria conveniente nem para mim nem para ela. O mundo ainda não estava preparado para uma situação como aquela e fui forte, como meu pai adotivo havia pedido. 

Fiz tudo o que queria na vida. A minha condição de solteirona gerou muitos comentários, mas virei estancieira, criei muito gado e honrei meu sobrenome. Minha Vila Rica se tornou conhecida no mundo pela criação do gado de pelo branco. Fiz, junto com alguns outros criadores, história na pecuária do Estado e do Brasil. Fui discreta, não tive aventuras, apesar de ter a oportunidades de tê-las vivido. Fui responsável, como queria Don Inácio e o padrinho, Chico Facundo. Este, quando soube que havia vencido, veio me visitar e disse estar orgulhoso de minha perseverança.

Fui para a última página: “Sinto que vivo meus últimos dias. Às vezes, puxo minha cadeira e fico olhando o céu estrelado. E penso em como fui feliz vendo os campos verdejantes, tanto pôr do sol, tanto amanhecer, ter escutado tantas músicas e vozes bonitas. Eu, que fui largada à beira de uma estrada, não poderia esperar tanto. Perdoei meus pais biológicos. Eles entenderam que não poderiam me criar. Então, deixaram que outros o fizessem, e esses o fizeram muito bem, Dom Inácio e a terra gaúcha abençoada. 

Tenho pena de ir embora, mas não morremos, nos transmutamos para nos transformar em memória. Quem sabe, um dia, alguém leia esses cadernos. Talvez faça arte. E a arte, meus amigos, perpetua o amor e a vida. Ou a vida eterniza o amor? Meu ultimo pedido: quero descansar no Cemitério do Cerrito, numa lápide simples. E serei para sempre só uma dessas esquecidas histórias do Rio Grande.”


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