Cadernos perdidos (4)

Cadernos perdidos (4)

Ali eu ia produzir, pagar toda a conta e criar de tudo. E vendo, a Leste, umas coxilhas mais altas, a rebatizei na hora de Rincão da Serra.

Paulo Mendes

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Tive alguns dias de trabalho extra, precisei fazer exames médicos, essas coisas que o senhor e a senhora sabem muito bem, pois impedem a gente de fazer mais nada do que o essencial. Eu não via a hora de retornar aos cadernos que por um golpe de sorte havia recuperado. Tinham sido escritos por dona Carmelinda Suárez y Ganaderya, uma fazendeira misteriosa que viveu por muitos anos na estância, um tanto reclusa e solitária. Eu, como jornalista, me interessei por sua trajetória e consegui encontrar uma espécie de diário. Eu pressentia que era uma personagem interessante, ouvia histórias aqui e ali, e agora estava convencido de sua importância. 

Nos relatos anteriores, contei desde a forma inusitada como foi encontrada à beira da estrada em Melo, no Uruguai, pelo carreteiro Inácio Suárez, que foi criada como filha dele em uma chácara em Pedras Altas. Na última crônica, transcrevi, quase literalmente, as palavras que dona Linda usou para contar a triste despedida que teve com seu pai adotivo, já velho, sua morte, o enterro do corpo no Cemitério do Coxilhão. Recordo que ela voltou sozinha para a chácara, resoluta a enfrentar a situação. No sábado posterior, acordei cedo, fiz o mate, e voltei ao caderno: 

“Dom Inácio um dia disse-me para que fosse forte. Segui sua vontade. Aos poucos fui entendendo que deveria ir embora. Assim, com ajuda do padrinho Facundo, fui vendendo a animalada, as ovelhas, o gado de corte, os cavalos de carreira, os galos de rinha, menos o Pé de Vento, meu pingo de encilha. Passado um ano, estava pronta. Faltava vender a chácara e decidir o lugar. Foi num comércio de carreira em Aceguá que soube, meio por sorte, de uma oportunidade na Vila Rica. Era depois da serra de Santa Maria, perto da Fazenda da Reserva, onde em março de 1889 havia ocorrido a famosa reunião dos republicanos liderados por Júlio de Castilhos. Um fazendeiro ia para o Mato Grosso e colocara a propriedade à venda. Sem dinheiro, usei a ousadia e fiz uma proposta indecente. Daria uma entrada e depois pagaria parcelas anuais. E ofereci meu padrinho Chico Facundo, estancieiro conhecido, como fiador.” 

“Contra todas as previsões, dois meses depois o fazendeiro aceitou. Mandou um emissário avisar. Então me fui, com a cara e a coragem. Quando entrei no trem, numa manhã de terça-feira, levava umas malas com roupas, outras com lembranças, outras de tralhas. Fiz baldeação em Santa Maria e chegamos ao fim da tarde na Estação da Vila Rica. Uma camioneta velha Ford me esperava e me levou para a estância, A noite estava tão escura e eu tão cansada que nada vi. Ofereceram-me uma refeição que nem lembro o que era. Recordo que dormi. Sonhei com um açude azul e cristalino, umas terras lindas, de coxilhas verdes e capões de eucalipto. Quando acordei, fiquei maravilhada. Ali eu ia construir minha nova vida, produzir, pagar toda a conta e criar de tudo. E vendo, a Leste, umas coxilhas mais altas, a rebatizei na hora de Rincão da Serra. 

Tive sorte. Segui as ideias avançadas do padrinho Chico Facundo que, à época, já repensava a pecuária. Peões poucos, mas inteligentes. Gado pouco, mas de qualidade. Implantei a primeira cabanha para produção de touros da raça charolesa. Deu frutos. Era lindo de se ver, ao longe, os campos verdes pintados de branco. (Continua) 


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