Os cadernos perdidos (3)

Os cadernos perdidos (3)

...uma imensa agonia invadiu meu ser e até nosso cachorro Tigre pressentiu, pois começou a ganir desesperado...

Paulo Mendes

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Eu havia sido obrigado a abandonar a leitura dos cadernos até então perdidos de dona Linda exatamente no ponto em que ela entrava no quartinho de Dom Inácio, já ancião, que tinha vivido os últimos tempos deitado em sua cama de ferro. Porém, tão logo me desocupei de minhas tarefas diárias no Correio do Povo, corri para a garagem, entrei no carro e acelerei para casa. Àquela hora, por volta de 22h, o trânsito no centro da capital é livre, mas nessa noite, em função de uma partida de futebol, o movimento era forte, com muita gente nos bares e tranqueira. Enquanto tentava manter a paciência dentro do veículo, pensava em como Carmelinda havia reagido à provável morte do pai adotivo e o que teria feito para sobreviver solita no mundo. Finalmente, uns 30 minutos depois, cheguei em casa e, apressado, esquentei no micro-ondas um resto do almoço. Creio que era um carreteiro de charque, mas recordo que o prato havia ficado salgado e, por isso, comi pouco. Em seguida, abri o caderno. 

“Vi o rosto branco, lívido, a boca aberta por onde descia uma baba amarelada, e o braço estendido em minha direção com a mão direita calejada aberta, a mesma que empunhava o facão, o Smith & Wesson, as regeras, a picana e até me penteava o cabelo com a velha escova de osso. De certa forma, já esperava por aquilo. Dom Inácio estava sofrendo muito com aquelas dores lancinantes que o corroeram por dentro. Mesmo assim, uma imensa agonia invadiu meu ser, e até nosso cachorro Tigre pressentiu, pois começou a ganir desesperado e eu também soluçava enquanto ajeitava o franzino corpo na cama. Primeiro, cortei cuidadosamente o cabelo branco, fiz-lhe a barba, troquei a roupa, vestindo-o com sua melhor pilcha. A bombacha de favos, a camisa branca, o lenço colorado, as botas de pelica. Ao meio-dia, quando o guri leiteiro passou na estrada, pedi-lhe que fosse avisando a vizinhança, nas chácaras vizinhas, no bolicho do Athaíde e, principalmente, o padrinho Chico Facundo.” 

“Foi este que chegou a galope uma hora depois. Já havia preparado o corpo, o padrinho trouxe umas velas compridas. Ele já tinha arreglado um terreno no Cemitério do Coxilhão, além do caixão com uma janelinha de vidro fosco. Veio pouca gente, mas os que vieram eram nossos amigos de fato. O bolicheiro e sua família, dois parentes do padrinho, seu Zeca e a dona Miloca, que preparou um arroz com galinha para servir com canjica ao pessoal. A noite chegou tristonha, mas o riso tomou conta quando o seu Bolachinha, um vizinho atarracado e brincalhão, começou a contar causos engraçados de dom Inácio.” 

“Quando amanheceu, seguimos em procissão com o corpo dentro da carreta, a junta de bois Pintado e Jaguané, e o Tigre ao lado. Foi gente a pé, de a cavalo, foi um cortejo simples, mas emotivo. Na hora de sepultar o corpo, o velho Facundo, meu padrinho, disse umas palavras de despedida e até improvisou uns versos: “Que Deus receba o gaúcho, que andou no pago inteiro, foi o melhor carreteiro, que pisou neste mundéu, toma aqui o teu chapéu, campeiro, pai e irmão, tu deixa agora o rincão, e vai descansar no céu...” Eu mesma trouxe a carreta para casa. Não tinha mais lágrimas. Passei o dia arrumando o rancho. Quando uma coisa termina, outra começa.” (Continua)

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