Violência contra a mulher: três em cada dez pedidos de medidas protetivas saem após prazo legal
Lei Maria da Penha estabelece que decisão que garante proteção das vítimas precisa sair até 48 horas após apresentação de pedido
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“Quarenta e oito horas é um tempo infinito para as vítimas. Imagine ultrapassar esse período. Muita coisa pode acontecer.” A análise da advogada Marina Ruzzi, fundadora do primeiro escritório de direito especializado no atendimento de mulheres vítimas de violência do país, se refere ao período estabelecido pela Lei Maria da Penha para a concessão da medida protetiva, um instrumento que prevê e assegura a distância entre vítima e agressor.
O estudo “Avaliação sobre a aplicação das medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha”, feito pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em parceria com o Instituto Avon, divulgado na última terça-feira, revelou que cerca de 30% dos pedidos são concedidos após o período definido pela legislação que protege vítimas de violência doméstica.
Em algumas regiões do país, o volume de processos em atraso é superior a 40%. Nos Tribunais de Justiça da Bahia, do Ceará e em Minas Gerais, metade dos pedidos fica sem resposta até o prazo-limite. Os Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro e de Pernambuco têm média superior a 45%.
Se mesmo nos casos em que se obtém na Justiça a medida protetiva em 48 horas a vítima fica sujeita a diferentes formas de violência até que o instrumento passe de fato a valer, observa Ruzzi, nas ocasiões em que o tempo de concessão ultrapassa os dois dias a vida dessas mulheres e meninas está sob ameaça. De acordo com a advogada, a lei previu o prazo máximo de 48 horas levando em consideração o ciclo de violência doméstica. “Nesses momentos, porém, algumas mulheres enfrentam situações de violência extrema, ficam trancadas em casa com o agressor”, ressalta.
O levantamento mostrou que, entre janeiro de 2020 e maio de 2022, o país registrou 572.159 medidas protetivas de urgência concedidas a meninas e mulheres em situação de violência doméstica. Segundo o estudo, nove em cada dez pedidos são deferidos, o que, de acordo com os pesquisadores, demonstra a adesão do Judiciário ao instrumento de proteção.
O total de medidas concedidas, afirma a coordenadora do Instituto Avon, Beatriz Accioly, demonstra uma significativa adesão ao mecanismo. “É um instrumento preventivo que visa à proteção e ao bem-estar da vítima e não à punição do agressor”, diz ela. Marina Ruzzi também acredita que os números representam um aumento na conscientização das mulheres sobre seus direitos. “O fato de meio milhão de mulheres acionarem o Judiciário é algo expressivo”, afirma. “As mulheres estão entendendo a necessidade de pedir as protetivas. Ouvir falar que elas existem é diferente de entender a dinâmica do funcionamento delas.”
Essas medidas têm como objetivo coibir a prática de violência doméstica e familiar, protegendo meninas e mulheres de agressões físicas, psicológicas e ameaças. A proteção pode ser solicitada pela mulher nas delegacias com ou sem a presença de advogados ou advogadas. A Lei Maria da Penha prevê que as medidas tramitem separadamente do processo principal, cujo objetivo é denunciar o crime cometido pelo agressor.
Essas garantias, segundo Ruzzi, garantem a efetividade das medidas, a segurança da vítima e a aplicação das restrições ao agressor, que pode ser afastado do local em que vive e obrigado a entregar armas de fogo caso tenha posse de alguma. Esses mecanismos duram enquanto houver algum tipo de risco imposto à vítima. A advogada explica, porém, que, quando a proteção é concedida pela Justiça, ainda há a etapa da intimação do agressor até que o instrumento comece a valer. “Qualquer espera é angustiante para a vítima”, diz Ruzzi.
A advogada ressalta que a primeira semana após o deferimento da medida costuma ser um momento de alerta para se observar o comportamento do agressor e o restabelecimento da nova rotina da vítima. “Acompanhei um caso em que o marido da vítima a agrediu e a expulsou de casa. Felizmente, ela contou com um acolhimento porque não tinha parentes nem dinheiro em São Paulo”, relata. “São momentos de extremo temor.”
Sub-representação e gargalos
O número de medidas protetivas registradas e apontadas pelo levantamento, realizado de acordo com a Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, pode estar sub-representado. Isso porque, segundo a coordenadora de pesquisa e impacto do Instituto Avon há um déficit de informações nos dados enviados pelos tribunais ao Conselho Nacional de Justiça. “Temos uma estimativa das medidas concedidas, mas que não corresponde plenamente à realidade”, diz.
Accioly afirma que é necessário qualificar os tribunais para que os dados incluam mais informações. “A visibilidade sobre mulheres que buscam o sistema de Justiça é muito ruim, somente em janeiro de 2020 os dados começam a ficar mais organizados.”
A coordenadora do estudo diz que a lentidão para o deferimento das medidas está relacionada à sobrecarga nas varas especializadas em violência doméstica e à falta de orçamento e de profissionais capacitados para trabalhar com as demandas. “A consequência disso é que, além de se passar uma mensagem de que essa não é uma prioridade do sistema de Justiça, reforçam-se os sentimentos de retaliação, vergonha e de que o pedido de ajuda demora a ser atendido”, afirma Accioly.
Entre os diferentes tipos de violência doméstica passíveis de medida protetiva, Ruzzi diz que, atualmente, há uma maior dificuldade em obter proteção em casos de violência patrimonial. “Quando não tem violência física ou ameaça, os juízes tendem a negar a medida protetiva”, afirma. Os casos de violência psicológica, segundo a advogada, também encontram barreiras na obtenção de medidas protetivas.
Outro gargalo apontado pelo estudo se refere às informações de perfil sociodemográfico de vítimas e agressores. A ausência de dados impede a realização de diagnósticos e análises mais completos. Apesar do baixo percentual de processos com a informação de idade, o levantamento revela que 29% das vítimas possuem entre 30 e 39 anos; 28%, entre 20 e 29 anos; 20%, entre 40 e 49 anos; 15% têm 50 anos ou mais; e 8%, até 19 anos.
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Em relação às pessoas que devem cumprir as medidas protetivas, 84,4% são agressores do sexo masculino; 10,3% são desconhecidos (sem o preenchimento da informação no sistema); e 5,3% são do sexo feminino. Além disso, 33% têm entre 30 e 39 anos; 26%, entre 20 e 29 anos; 24%, entre 40 e 49 anos; 16% têm 50 anos ou mais; e 2%, até 19 anos.
Dos 572.159 processos sobre medidas protetivas com registro no período, 89.734 (15,7%) foram no Rio de Janeiro; 89.404 (15,6%), no Paraná; e 78.942 (13,8%), em Minas Gerais. Mas, quando os processos são avaliados em relação à população feminina, nota-se que a maior incidência é no Distrito Federal, com 2.243 processos a cada 100 mil mulheres residentes; seguido por Mato Grosso do Sul, com 1.793; e pelo Paraná, com 1.522.
O que pode melhorar
A coordenadora do Instituto Avon afirma que é preciso melhorar o preenchimento dos dados a serem enviados ao CNJ. Atualmente, não é possível identificar, por exemplo, o número de medidas protetivas obtidas de acordo com o perfil étnico-racial das mulheres. "Faltam dados sobre identificação racial, não se conseguiu traçar esse perfil, tem de haver uma melhor coleta dessas informações."
Segundo Accioly, somente a visibilidade e a transparência desses dados permitirão que mulheres possam responsabilizar as autoridades e o sistema de Justiça para garantir o cumprimento da lei. "Sabemos por meio dos casos individuais quão difícil é buscar a Justiça e enfrentar esses processos", diz.
"Ao monitorarmos as ações de proteção e apoio às mulheres, contribuímos para que a aplicação da lei seja integral e igualitária a todas as pessoas que buscam assistência para encerrar situações ou ciclos de violência", afirma Daniela Grelin, diretora-executiva do Instituto Avon.