O filme que registrou a Revolução de 1923

O filme que registrou a Revolução de 1923

Película do diretor Benjamin Camozato é um dos raros registros em vídeo do conflito armado no Rio Grande do Sul

Carlos Corrêa

Registros nos campos de batalhas estão entre cenas épicas

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Quando faleceu, em maio de 1964, aos 79 anos, Benjamin Camozato partiu com a certeza de ter aproveitado a sua passagem pela vida. Ao longo de quase oito décadas, uma das figuras mais renomadas de Cachoeira do Sul à época esteve envolvido em atividades tão distintas como filatelista, revendedor de máquinas de escrever e até touradas. Era, no entanto, mais conhecido por sua atividade mais formal: a odontologia. O dentista, contudo, tinha seu lado artista e foi em função desta verve que produziu uma pequena joia para a história do Estado: uma rara película filmada nos campos gaúchos durante a Revolução de 1923. “A Revolução no Rio Grande” teve poucas exibições nos cinemas brasileiros e suas raras cópias encontram-se hoje em locais de preservação como a Cinemateca Paulo Amorim, na Casa de Cultura Mário Quintana (CCMQ), o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa e o Instituto Histórico e Geográfico do RS. A produção teve uma estreia de luxo, já que as informações dão conta que ela aconteceu naquele mesmo ano, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, então sede do Governo Federal, inclusive com a presença do presidente Arthur Bernardes.

Feito em 1923, quando o som ainda não havia chegado às telas, o filme é um documentário de cerca de uma hora em que imagens de chimangos e maragatos intercalam-se nas telas, pontuadas por uma série de intertítulos - como são chamados, por assim dizer, os cartazes exibidos no cinema mudo para explicar a cena ou dar voz aos personagens - que identificam personalidades históricas da revolução, como o chimango Firmino de Paula e o maragato Honório Lemos, além do ministro da guerra Setembrino de Carvalho, responsável por mediar o Tratado de Pedras Altas, que selou a paz ao fim do confronto. Não há registro de combates, mas é possível verificar que as colunas reuniam centenas e centenas de combatentes de lado a lado. “A coisa mais legal são os lanceiros a cavalo. São uns planos bem bonitos que o diretor faz ali”, observa o pesquisador Glênio Póvoas, da Cinemateca Paulo Amorim e um dos responsáveis por manter viva a história do cinema gaúcho ao resgatar diversos dados como perdidos.

Os pesquisadores estimam que sequer dez cidades registraram a exibição de “Revolução no Rio Grande”. No Estado, há notícia de que chegou às telas de Passo Fundo, Santana do Livramento, Pelotas e Caxias do Sul, além de Porto Alegre. Um século depois, o fato de tão poucas pessoas terem visto o filme torna a película uma pedra ainda mais preciosa, como se guardasse segredos a que poucos tiveram acesso. Muito já se escreveu sobre a Revolução de 1923. Mas pouco, muito pouco, foi registrado em vídeo. Que dirá ter resistido aos 100 anos seguintes. É o caso, por exemplo, de “No Pampa Ensanguentado”, de 1924, do diretor Carlos Comelli. A produção também trazia diversas imagens da revolução, incluindo combates e o recebimento de munições pelas colunas. No entanto, perdeu-se no tempo e hoje é considerado desaparecido.

Póvoas revela não saber o que aconteceu com a cópia original de “A Revolução no Rio Grande”, feita em 35mm, depois que ela foi encaminhada à Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Ele lembra, no entanto, que o também pesquisador e historiador de cinema Antonio Jesus Pfeil foi o responsável pela “redescoberta” do filme de Camozato. Por meio de pesquisas nos jornais da década de 1920, sabia-se da existência da película, que no entanto estava “desaparecida”. Pfeil contatou a viúva do diretor, falecido em 1964, e descobriu que ela guardava o original. Voltou de lá com o filme embaixo do braço. Se chegou a pedir autorização? “Sei lá”, diverte-se Póvoas.

 

Trechos do vídeo mostram o cotidiano durante a guerra / Foto: Reprodução/CP

 

Documentário, feito na era do cinema mudo, traz intertítulos / Foto: Reprodução/CP

Confronto vai ganhar as telas da TV em nova série

Ao contrário da Revolução Farroupilha, figura muito mais frequente nas telas do cinema gaúcho e da TV, a Revolução de 1923 sempre teve uma produção menor, pelo menos em números. Agora, títulos como “Os Senhores da Guerra” (2012), de Tabajara Ruas, e “Escondidos” (2021), de Gustavo de Resende Fabião, podem ganhar companhia ilustre. Diretor de obras como “Lua de Outubro” (1997) e “Contos Gauchescos” (2011), Henrique Freitas Lima prepara uma série para a TV focada no conflito do início dos anos 1920.
“Os Caudilhos” ainda está em fase de captação de verbas e, portanto, não há previsão de estreia. O objetivo inicial é arrecadar pelo menos R$ 600 mil, mas Lima admite que a produção terá que se adaptar ao valor arrecadado. O roteiro, que já teve um tratamento inicial, prevê a passagem por pelo menos dez palcos que o diretor considera vitais para se contar essa história: Uruguaiana, Alegrete, Santana do Livramento, Rosário do Sul, São Gabriel, São Francisco de Assis, Caçapava, Camaquã, Pedras Altas e Pelotas.

“Os Caudilhos” será um docudrama, mesclando história e ficção, explica o diretor. “A parte mais saborosa é falar da disputa entre Flores da Cunha e Honório Lemos, é o nosso foco”, conta Lima, que toma como base para a série o livro “Mensagem a Poucos”, de Antero Marques. Ainda que se trate de um episódio histórico ocorrido apenas no Rio Grande do Sul, o diretor acredita que isso não será um empecilho para o seu alcance: “Não estou falando só para o gaúcho. Qualquer brasileiro vai entender o que eu quero dizer.”

 

Diretor Henrique de Freitas Lima está à frente do projeto “Os Caudilhos” / Foto: Maria Eduarda Fortes

 

Memória: álbum de fotos compila imagens do conflito

Se em termos cinematográficos, “A Revolução no Rio Grande” é uma preciosidade histórica, em termos fotográficos, um dos equivalentes pode ser o “Álbum dos Bandoleiros”, organizado e publicado pela Revista Kodak, que circulou no Estado entre 1912 e 1920, e que organizou o compilado de fotos que mostram a rotina da Revolução de 1923 no Rio Grande do Sul.

Um dos exemplares encontra-se na Biblioteca da PUCRS – o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa conta com outro. Nele, é possível verificar registros como o encontro em uma churrascada entre o ministro da guerra, Setembrino de Carvalho e o general Portinho, entre outros (foto acima) ou imagens da população saudando os revolucionários em Alegrete.

Uma das fotos mostra o encontro em uma churrascada entre o ministro da guerra, Setembrino de Carvalho e o general Portinho, entre outros / Foto: Reprodução

 

 


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