Sequência de perdas com enchentes testa resiliência de agricultores familiares na Região dos Vales

Sequência de perdas com enchentes testa resiliência de agricultores familiares na Região dos Vales

Produtores rurais tentam retomar a vida e a organização das propriedades atingidas por enchentes

Itamar Pelizzaro

Destruição em ponte na Linha Ernesto Alves, interior de Imigrante

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As cheias no interior do RS destruíram mais do que a produção agropecuária e a infraestrutura urbana e rural. As perdas estão sendo quantificadas pela Emater/RS-Ascar, mas o abalo emocional causado pela segunda catástrofe em um espaço de dois meses está sendo um teste de resistência para agricultores familiares da Região dos Vales, que compreende áreas banhadas pelos rios Jacuí, Pardo, Taquari e Caí.

Para além de prejuízos econômicos, os efeitos do El Niño fizeram germinar o desalento em paralelo aos desafios de reconstrução e retomada a produção comercial e de subsistênia.

Leia abaixo depoimentos de dois agricultores familiares do município de Cruzeiro do Sul ainda consternados pelas enchentes e tentando retomar a vida e a organização das propriedades.

“Vamos ver até onde a gente aguenta”

Fabio Scheibel, produtor de hortaliças na Linha São Miguel, no município de Cruzeiro Do Sul. Cultiva hortaliças como alface, repolho, tempero verde, rúcula e couve em uma área de três hectares e planta milho em outros cinco. 

"Fazia tempo que não tinha uma lavoura tão equilibrada assim." Foto: Marcos Antonio Hinrichsen / Fetag-RS / CP

“Infelizmente passamos por isso novamente. É até difícil de acreditar, ainda mais na proporção da água que veio. Costumo falar que moramos num vale, e os vales têm essa característica de enchentes, mas não na magnitude que foi, praticamente igual à de setembro. A diferença desta é que a água demorou para subir, mas demorou ainda mais para descer. É difícil ficar dois dias com enchente, mas dessa vez ficou. Normalmente, a água sobe num dia e desce no dia seguinte. Foi de se assustar. Para eu falar isso é difícil, mas todo mundo diz que é efeito disso e daquilo, desmatamento, coisa e tal. Acho que tudo contribui, mas será que houve uma uma virada de chave para acontecer tudo de uma vez só? É difícil entender. Dois meses depois da primeira enchente, já veio outra. E ocorreu em novembro. O pai tem 81 anos e lembra de apenas uma enchente grande. Costumeiramente não dá cheias de novembro a março, na época de verão. Eu perdi de novo a lavoura toda. Estava bonita. Fazia tempo que não tinha uma lavoura tão equilibrada assim. A sorte é que nas cercas só tinha levantado o muro e colocado os postes, não coloquei a cerca, senão a água tinha levado tudo embora. Não sei até onde vamos continuar reconstruindo. É difícil. Se esse for o novo normal, acredito que a agricultura seja extinta no Rio Grande do Sul. Essa cheia não pegou só o Taquari, pegou a região do Caí e regiões do Rio Uruguai. Tem pessoal em Feliz, produtores fortes de hortaliças, que moram a dois quilômetros do rio. Lá a água entrou até na câmara fria. E não é só o pessoal das hortaliças. Olha o produtor de trigo. Já tomou ferro e agora está na expectativa de plantar soja. Já estamos nos encaminhando para o final de novembro e praticamente não tem soja plantada. Quem planta soja, olha o risco que está correndo. Esse não pode ser o novo normal. Se for, vai ter de haver uma transformação radical na agricultura e também para o pessoal que mora nas cidades. Vamos ver até onde a gente aguenta.”

“Muitos estão pensando em abandonar tudo e sair”

Mauro Gilberto Soares tem uma propriedade de oito hectares em Linha Lotes, no interior de Cruzeiro do Sul, onde produz cultivos de subsistência e cria suínos da raça Moura e bovinos, para venda de terneiros. 

 "A propriedade virou uma anarquia, com muito lixo e perdas de animais" / Foto: Mauro Soares / Divulgação / CP

“Estamos na correria, tentando colocar a vida dos animais em dia, porque ficaram soltos, atirados, com fome. Nas cheias, os bichos ficaram só com a cabeça fora da água. A prioridade é recuperar os que sobreviveram. A enchente foi igual à de setembro, não teve nenhuma diferença na altura da água. A propriedade virou uma anarquia, com muito lixo e perdas de animais. Salvei vários animais, mas a gente não conseguiu salvar os móveis dentro de casa e estruturas da propriedade como galpão e chiqueiro. Surpreendente como a volta à normalidade foi tão rápida. Veio mais uma enchente com esse volume, tantas perdas, e as pessoas não estão sequer preparadas para enfrentar esses eventos. Não há discussão com a sociedade para amenizar esse problema. As pessoas se reestruturam nas suas propriedades. A gente sabe que depois da segunda, da terceira enchente, isso não vai ser mais visado pelos poderes públicos. Não vai ser mais visto também pelos meios de comunicação. A coisa vai voltar quase à normalidade, mas a vida das pessoas não está nessa normalidade. Estamos trabalhando só para recuperar perdas da enchente, que não é uma coisa normal na nossa vida. Não era e não é mais o cotidiano de nossa vida, mas passa a ser, e não estamos estruturados para esse tipo de coisa. Vai ser difícil. Muitas pessoas que sobreviviam aqui na região, em pequenas propriedades da agricultura familiar, estão pensando em abandonar tudo e sair. Não aguentam mais essa pressão psicológica e as dificuldades que enfrentam com essas cheias. Essa é a grande dificuldade na região. Precisava haver uma discussão com o poder público para que as pessoas pudessem reinventar a propriedade de uma maneira que as cheias não fossem tão prejudiciais. Esse é o grande desafio que temos pela frente, sobreviver nesse lugar e com as cheias que estão atuando."

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